A Lei das Estatais e a alocação de riscos
- 16 de setembro de 2021
- Posted by: Inove
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1. INTRODUÇÃO
A Lei 13.303, de 30 de junho de 2016, conhecida como Lei das Estatais ou Lei de Responsabilidade das Estatais, dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para atendimento do art. 173, §1º., da Constituição Federal.[1]
A edição desse estatuto jurídico veio preencher uma lacuna que havia no sistema jurídico-constitucional, e objetiva estabelecer parâmetros de organização e de atuação das empresas estatais.
André Guskow Cardoso observa que as empresas estatais sempre estiveram sujeitas a uma ingerência do Estado, através dos sucessivos governos. Havia o atendimento de demandas políticas por parte dos governantes, o que refletia na escolha dos dirigentes e na forma de atuação dessas empresas.[2]
Jerson Carneiro Gonçalves Júnior e Leonardo Cardoso de Castro Dickinson também argumentam:
A prática ocorrida “nos bastidores” do sistema político fracassado existente no Brasil que levam às condutas aqui apresentadas, conforme será explorado em momento oportuno neste tópico, é fruto, em sua grande parte, de indicações políticas dos gestores dos Poderes Executivo, Legislativo (demonstrando a existência ainda de uma administração patrimonialista) – nos âmbitos municipal, estadual e federal e do Poder Judiciário – nas esferas estadual e federal – responsáveis por aprovar o procedimento administrativo referente à licitação ou à sua dispensa. Diante da onda de corrupção na gestão cleptocrata existente nas estatais brasileiras, foi instituída a denominada “Lei das estatais”, após muita pressão e muita negociação, o que inclui exigências para nomeação como experiência na área da empresa e formação acadêmica compatível.[3]
Trata-se de uma lei nacional e ordinária que abrange a empresa pública e a sociedade de economia mista, que fazem parte da Administração Indireta, sendo aplicável tanto para as estatais que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da União) quanto para as prestadoras de serviços públicos. Portanto, a legislação não fez a distinção entre essas duas espécies de empresas governamentais, impondo regras iguais a ambas.
Há uma crítica em relação a essa fixação de normas homogêneas, dispostas sem levar em conta a atividade desenvolvida pela estatal. Isso iria na contramão da doutrina e da jurisprudência que sempre apresentaram distinções em relação ao regime jurídico das estatais, dependendo da atividade exercida – se exploradora de atividade econômica ou prestadora de serviços públicos.
Ricardo Marcondes Martins discorre no sentido de que essa unificação de regimes acaba por transformar os serviços públicos em atividades econômicas. No entanto, qualquer pretensão legislativa de atribuir aos serviços públicos o regime jurídico das atividades econômicas viola o texto constitucional. Quando uma empresa estatal não explora atividade econômica, não há fundamentos para submetê-la às regras de Direito Privado, razão pela qual fica evidente que essa submissão representa uma fuga para o Direito Privado.[4] Portanto, a utilização da forma da “empresa estatal” para outra finalidade que não seja a exploração da atividade econômica, seria ilícita. Por fim, o autor conclui que “as empresas estatais prestadoras de serviço público, construtoras de obras públicas e exercentes de função pública são contrafações[5] de autarquia e, como tais, regem-se integralmente pelo Direito Administrativo, tais como todas as autarquias”.[6]
Por outro lado, Celso Antônio Bandeira de Mello reconhece a possibilidade de se ter uma dupla natureza para as empresas estatais: a) exploradora de atividades econômicas, ou b) prestadora de serviços públicos ou coordenadora da execução de obras públicas. Para o professor:
Deveras, algumas empresas públicas efetivamente são concebidas como instrumento de atuação estatal no referido setor (exploração de atividade econômica). Outras, entretanto, foram criadas e existem para prestação de serviços públicos, serviços qualificados, inclusive pela Constituição em vigor, como privativos da entidade estatal ou da própria União, ou para realizar obras públicas ou, ainda, para desenvolver atividades de outra tipologia, isto é, misteres eminentemente públicos. Donde, a atividade em que se substanciam apresenta-se, do ponto de vista jurídico (ainda que não o seja ou não o fosse sob perspectiva extrajudicial), como a antítese da exploração da atividade econômica, já que esta, perante a Lei Magna, é da alçada dos particulares, típica da iniciativa privada – e não do Poder Público. O Estado só pode protagonizá-la em caráter excepcional.[7]
Nesse cenário de uma dupla natureza para as empresas estatais, teríamos um regime híbrido, decorrente da reunião de normas de direito público e de direito privado, embasado em duas teses defendidas por Celso Antônio Bandeira de Mello e Geraldo Ataliba, quais sejam, que toda empresa estatal estaria submetida, ao menos parcialmente, ao Direito Administrativo, e que a submissão seria maior em relação às prestadoras de serviço público do que em relação às exploradoras de atividade econômica.[8]
Portanto, logo no caput do art. 1º. da Lei 13.303/2016, realmente verificamos uma inconstitucionalidade ao se impor a incidência do mesmo regime jurídico para todas as empresas estatais, sejam elas exploradoras de atividade econômica ou sejam prestadoras de serviço público.
Para Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch Santos, a norma legal “transcendeu a determinação da Constituição e incluiu no regime jurídico que preceitua as empresas públicas e sociedades de economia mista as prestadoras de serviços públicos”. No entanto, concordamos com os autores no sentido de até que seja declarada a inconstitucionalidade, pelo Poder Judiciário, a lei aplica-se às estatais prestadoras de serviços públicos, inclusive nas regras relativas a licitações e contratos.[9]
Importante ressaltar, que a questão encontra-se sob o crivo do controle concentrado de constitucionalidade por meio da ADI-DF sob nº 5624, a qual, aguarda julgamento.
Por outro giro, é importante observar que quando o Estado explora uma atividade econômica, ele concorre no mercado com os particulares. No entanto, nesse caso, o Estado não pode atuar sob o manto das prerrogativas inerentes à supremacia do interesse público sobre o privado, sob pena dessa concorrência ser desleal. Sendo assim, o Estado deve se sujeitar, na medida necessária, ao regime jurídico das empresas privadas (nos prazos judiciais, na execução de débitos, na responsabilidade por danos decorrentes de sua atuação, etc.). Em outras circunstâncias, incidirá o Direito Administrativo (no dever de licitar, na realização de concursos, etc.).[10]
2. DISCIPLINAS DA LEI DAS ESTATAIS
A Lei 13.303/2016 disciplina basicamente dois assuntos: (i) regras de governança corporativa, transparência na gestão e mecanismos de controle da atividade empresarial das estatais; e (ii) licitações e contratações das estatais.
Paulo Osternack Amaral explana sobre o conceito de governança de acordo com a consagrada doutrina sobre o tema:
Governança corporativa consiste no conjunto de políticas e práticas orientadas a conferir maior transparência, estabelecer mecanismos de controle, estimular e garantir a atuação ética dos envolvidos, minimizar potenciais conflitos, agir em conformidade com as regras (internas e externas), enfim, aumentar a confiabilidade da companhia no mercado, mediante a valorização da empresa e a proteção das partes interessadas (stakeholders), dos investidores, dos empregados, do mercado e dos credores.[11]
Com relação à transparência na gestão, um dos principais pilares está na nova forma de escolha dos dirigentes. A Lei das Estatais estabeleceu novas condições para a nomeação dos membros do Conselho de Administração e da Diretoria. Fernão Justen de Oliveira destaca que os sujeitos indicados devem atender a critérios de qualificação técnica, com exigência de tempo de exercício profissional, de formação acadêmica e de elegibilidade geral. Houve a vedação da indicação de agentes políticos e reguladores, de partes contratantes e de outros titulares de interesses conflitantes, além de prevenir o nepotismo e a simulação. Além disso, acrescentou competências ao Conselho de Administração em coerência com práticas obstativas de corrupção, incrementando a disciplina sobre a participação de empregados, acionistas minoritários e administradores públicos”.[12]
Já os mecanismos de controle interno da lei abrangem regras de estruturas, elaboração de códigos de conduta e integridade e práticas de gestão de riscos e compliance.
No que tange às licitações, na Lei das Estatais há o estabelecimento de regras para contratos com terceiros, abrangendo prestação de serviços, inclusive de engenharia e publicidade, aquisição e locação de bens, alienação de bens e ativos integrantes do patrimônio, execução de obras integradas ao patrimônio e implementação de ônus real sobre os bens. Para tanto, adotou disciplina muito semelhante ao RDC, abandonando as modalidades tradicionais de licitação previstas na Lei 8.666/93, para introduzir um procedimento único, modos de disputa aberto, fechado ou misto, inversão de fases, critérios de julgamento diferenciados, dentre outros mecanismos previstos na própria Lei 13.303/2016.
Destacamos que o art. 28, §3º, inc. I, prevê a inaplicabilidade de licitação no caso de “comercialização, prestação ou execução, de forma direta, pelas empresas mencionadas no ‘caput’, de produtos, serviço ou obras especificamente relacionados com seus respectivos objetivos sociais”. Assim, as atividades que são necessárias para a atuação da empresa estatal – atividades-fim -, que explore atividade econômica (não aquela que presta serviço público), são realizadas sem o processo licitatório, ao passo que as atividades-meio, instrumentais, submetem-se ao regime licitatório.
No que tange aos contratos das estatais, pela regra do art. 68 eles não se subordinariam ao regime jurídico de direito público, pois seriam regulados pelas suas cláusulas, pela lei e pelos preceitos de direito privado, com o objetivo de se afastar do regime de direito público. Maria Sylvia Zanella Di Pietro imprime pertinente crítica em relação a essa disposição:
Na Lei 13.303, o legislador aparentemente quis inovar ao afirmar que os contratos por ela regidos se submetem aos preceitos de direito privado e também “pelo disposto nesta Lei”. Por outras palavras, no silêncio da norma de direito público (que é a Lei n. 13.303), aplica-se o direito privado. Na realidade, não mudou muita coisa, até porque a lei repete grande parte das normas da Lei 8.666. Poderia, simplesmente, ter determinado que, em matéria de contratos, as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias se submetem às normas da Lei n. 8.666/93, indicando as hipóteses em que essa aplicação não ocorreria. No entanto, a intenção do legislador foi a de dar aos contratos firmados pelas empresas estatais a natureza de contratos de direito privado.[13]
Sendo assim, as cláusulas necessárias ao contrato estão previstas no art. 69 e são muito semelhantes à Lei 8.666/93. A duração dos contratos não excederá 5 (cinco) anos, exceto no caso de projetos do plano de negócios e investimentos e condições de mercado, que poderão ultrapassar esse prazo.
Por fim, a Lei das Estatais não repetiu as disposições do art. 58 da Lei 8.666/93, que estabelecem as prerrogativas das Administração Pública. Nessa Lei não temos, por exemplo, a figura da alteração unilateral do contrato, prevalecendo a modificação consensual.
3. MATRIZ DE RISCO NA CONTRATAÇÃO DAS ESTATAIS
No que tange à matriz de riscos, inicialmente, a Lei n. 13.303/16, em seu art. 42, inc. X, dispôs uma definição sobre o instituto:
Art. 42. Na licitação e na contratação de obras e serviços por empresas públicas e sociedades de economia mista, serão observadas as seguintes definições:
[…]
X – matriz de riscos: cláusula contratual definidora de riscos e responsabilidades entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à contratação, contendo, no mínimo, as seguintes informações:
a) listagem de possíveis eventos supervenientes à assinatura do contrato, impactantes no equilíbrio econômico-financeiro da avença, e previsão de eventual necessidade de prolação de termo aditivo quando de sua ocorrência;
b) estabelecimento preciso das frações do objeto em que haverá liberdade das contratadas para inovar em soluções metodológicas ou tecnológicas, em obrigações de resultado, em termos de modificação das soluções previamente delineadas no anteprojeto ou no projeto básico da licitação;
c) estabelecimento preciso das frações do objeto em que não haverá liberdade das contratadas para inovar em soluções metodológicas ou tecnológicas, em obrigações de meio, devendo haver obrigação de identidade entre a execução e a solução pré-definida no anteprojeto ou no projeto básico da licitação.
Pela Lei das Estatais, a matriz de risco deve apresentar uma série de detalhamentos. Deve conter indicativo de possíveis eventos supervenientes durante a execução do contrato, que impactem no equilíbrio econômico-financeiro, e dos respectivos aditivos necessários. Além disso, a lei indica em que circunstâncias a contratada pode contar ou não com liberdade para inovar em soluções metodológicas ou tecnológicas. A contratada poderá inovar em obrigações de resultado, que “são aquelas que integram o núcleo substancial da contratação e que objetivam a efetiva satisfação da necessidade que gerou a contratação”.[14] Não terá essa opção nas obrigações de meio, que “são aquelas instrumentais e acessórias à realização da obrigação principal inserida no contrato”.[15]
Essa conceituação deixa evidente a necessidade de se definir os riscos e as responsabilidades entre as partes, o que será crucial não só para o estabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro da contratação, mas também para as ações posteriores à assinatura do contrato.
Na elaboração de uma matriz de risco, não se pode prescindir de: “(i) análise do histórico de contratações similares realizadas pela empresa estatal, objetivando a inserção na matriz de riscos da experiência concreta vivenciada em contratações anteriores; e (ii) detalhada maturação de planejamento, objetivando abranger no plano teórico todo e qualquer evento que possa ocorrer no futuro para a definição sobre a responsabilidade por ele”.[16]
Rodrigo Pironti obtempera que a inovação na Lei das Estatais é “válida” pois permite aos licitantes elaborarem suas propostas com “maior exatidão e responsividade”, pois saberá quais são suas responsabilidades; e, por outro lado, é “salutar”, pois evitará disputas entre as partes ao longo da execução do contrato, visto que já saberão previamente quais eventos resultarão no equilíbrio econômico-financeiro e quais não darão ensejo à recomposição.[17]
No caso de contratos que envolvem estatais, a formatação da matriz de risco deve contemplar o chamado “risco político”. Embora essas entidades sejam dotadas de personalidade jurídica de direito privado, e conquanto a lei se propugne tornar essas empresas mais profissionais e menos interligadas a interesses de governantes do momento, “não se trata de missão fácil afastá-las completamente das ingerências políticas, afinal são os Governos (Federal, Estadual ou Municipal), via de regra, os seus controladores”.[18]
A legislação não apenas definiu a cláusula de matriz de risco e seu conteúdo mínimo, como também dispôs sobre sua aplicação:
Art. 42. […]
§1o As contratações semi-integradas e integradas referidas, respectivamente, nos incisos V e VI do caput deste artigo restringir-se-ão a obras e serviços de engenharia e observarão os seguintes requisitos:
I – o instrumento convocatório deverá conter:
[…]
d) matriz de riscos.
A matriz de risco é anexo obrigatório do instrumento convocatório nas licitações para obras e serviços de engenharia nas modalidades de contratação integrada e semi-integrada. Uma leitura mais restritiva desse dispositivo nos levaria à conclusão de que a cláusula de matriz de risco seria aplicável somente para essas hipóteses de contratação. No entanto, há razões jurídicas e fáticas para se concluir sobre a sua aplicabilidade aos demais contratos das estatais.[19]
Juridicamente, o próprio artigo 69 da Lei expressamente prevê: “Art. 69. São cláusulas necessárias nos contratos disciplinados por esta Lei: […] X – matriz de riscos”. Diante desse dispositivo, resta evidente que a matriz de risco é cláusula necessária a todo e qualquer contrato das estatais e que, para aqueles contratos de obras e serviços de engenharia, sob a modalidade de contratação integrada ou semi-integrada, a legislação apresentou alguns requisitos mínimos.
Sob o enfoque fático, não seria possível afirmar que um contrato de obra na modalidade integrada ou semi-integrada possa oferecer mais ou menos risco que um contrato de terceirização na área de segurança, por exemplo.
Mas, por outro giro, surge o questionamento se a matriz de risco seria necessária em todos os contratos, até nos mais simples. Nas lições de Rodrigo Pironti e Francine Gonçalves, a resposta seria positiva. No entanto, isso não significaria a necessidade de se ter uma cláusula positivada, expressa, em cada contrato. Os autores esclarecem que o processo de gerenciamento de riscos é composto de várias etapas e que o tratamento do risco dependerá do “apetite de risco” da entidade, ou seja, do nível de risco que a entidade está disposta a aceitar. Isso significa não tomar ações antecipadas e arcar com as consequências desse risco. Diante disso, realizada a verificação dos riscos e uma vez definido que eles não precisão ser materializados em matriz contratual, pois serão aceitos pela organização, dispensa-se a cláusula de matriz de riscos. Esse procedimento pode ser adotado em contratos mais simples como compras com entrega imediata, contratações por dispensa de pequeno valor, dentre outros.[20]
Edgar Guimarães e José Anacleto Abduch Santos também defendem que a matriz de risco não é uma cláusula contratual que deva ser utilizada somente nas contratações de obras e serviços de engenharia, mas em qualquer espécie de contratação realizada pelas estatais que apresentem alguma complexidade, como medida de boa prática administrativa. Os autores argumentam que são inegáveis e muitos os ganhos e proveitos da elaboração de uma matriz de riscos quando de contratações complexas, que envolvam riscos potenciais que, se previamente atribuídos a qualquer das partes, evitam discussões posteriores sobre a distribuição de responsabilidades entre as partes contratantes, havendo a prevenção da litigiosidade pela via judicial.[21]
Daniel Siqueira Borda orienta que, para que seja implementada a matriz de risco, a estatal precisa deter um certo grau de conhecimento do objeto que será contratado, pois somente dessa forma será possível contingenciar e definir a gama de riscos que envolvem a contratação, bem como eleger qual das partes estará mais apta a lidar com essas situações supervenientes.[22]
Sobre o tema, o Tribunal de Contas da União em recente sessão plenária, por meio do Acórdão sob o nº 4551 de 2020, adotou o seguinte entendimento:
VISTOS, relatados e discutidos estes autos de auditoria realizada no âmbito do Fiscobras-2020, por força do Acórdão 2556/2019-TCU-Plenário, sobre a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) com vistas a avaliar a retomada das respectivas obras em dezoito aerogeradores no parque de geração de energia eólica em Casa Nova A na Bahia a partir do aporte de recursos corporativos próprios da Chesf;
ACORDAM os ministros do Tribunal de Contas da União, reunidos em Sessão Extraordinária do Plenário, diante das razões expostas pelo Relator, em:
9.1. determinar, nos termos do art. 250, II, do RITCU, que a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) e as Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras) adotem as medidas cabíveis, no bojo do Contrato CTNI-80.2018.1280.00, entre outros semelhantes ajustes atuais, com vistas à efetiva correção das seguintes falhas:
9.1.1. ausência de cláusula sobre a matriz de riscos nos contratos de obras e serviços de engenharia, já que, independentemente do regime de execução, a matriz de risco figuraria como exigência fixada para as empresas estatais pelo art. 69, X, da Lei n.º 13.303, de 2016, e, assim, deveria estar inserida nos contratos para obras e serviços de engenharia firmados pelas empresas estatais em prol da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do ajuste;
9.1.2. celebração de aditivos em função de eventos supervenientes alocados na matriz de riscos sob a responsabilidade da contratada, ferindo o art. 81, §8º, da Lei n.º 13.303, de 2016; (grifos nossos)
Portanto, entendemos restar caracterizada a importância da matriz de riscos nos contratos realizados pelas estatais.
4. ALOCAÇÃO DE RISCOS NA LEI DAS ESTATAIS
Destacamos que há uma alocação legal de riscos prevista no §3º. do art. 42: “Nas contratações integradas ou semi-integradas, os riscos decorrentes de fatos supervenientes à contratação associados à escolha da solução de projeto básico pela contratante deverão ser alocados como de sua responsabilidade na matriz de riscos”.
A ideia trazida nessa alocação é que, quando estamos tratando da responsabilidade do Poder Público, quanto mais ele interfere nos estudos técnicos que dão embasamento para a licitação, mais ele se compromete, em alguma medida, com o resultado, razão pela qual, o legislador imprimiu tal dispositivo na legislação em pauta, com a intenção de estabelecer limites à esta responsabilização estatal, ao passo que, a contratada deverá responder pelas soluções técnicas por ela proposta.
Nesta esteira, merece destaque o disposto no art. 81, §8º., da Lei: “Art. 81. […] §8º. É vedada a celebração de aditivos decorrentes de eventos supervenientes alocados, na matriz de riscos, como de responsabilidade da contratada”.
Em que pese a disposição legal apresentada, ratificada pelo acórdão citado, entendemos que, impor à contratada uma responsabilização futurista sem margem de revisão ou readequação a depender da situação fática, inclusive ocorrência de fatos supervenientes, pode levar a Administração a efetivar contratações antieconômicas, ao passo que, o possível ônus financeiro a ser suportado pela contratada, ocasiona elevação de custos na oferta de preços, considerando a possibilidade futura e incerta de um desequilíbrio contratual. Destarte que, gestão de riscos é uma ação que deve ser implementada, executada e monitorada de forma contínua.
É evidente que no momento da licitação, não há como prever e antecipar todos os riscos passíveis de ocorrer durante a execução contratual. Além disso, a Lei das Estatais também não eliminou a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro na hipótese de ocorrência de áleas extraordinárias. De acordo com o art. 81, inc. VI, da Lei, os contratos celebrados nos regimes de empreitada por preço unitário, empreitada por preço global, contratação por tarefa, empreitada integral e contratação semi-integrada (excluindo-se apenas os contratos sob o regime de contratação integrada) contarão com cláusula que estabeleça a possibilidade de alteração, por acordo entre as partes:
Art. 81. Os contratos celebrados nos regimes previstos nos incisos I a V do art. 43 contarão com cláusula que estabeleça a possibilidade de alteração, por acordo entre as partes, nos seguintes casos:
[…]
VI – para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual.
Sintetizando, esse dispositivo, com redação quase idêntica ao art. 65, II, “d”, da Lei 8.666/93, visa a tutelar o equilíbrio econômico-financeiro da contratação. Portanto, nesse caso, será necessário verificar o impacto econômico-financeiro na equação encargo/remuneração presente no ajuste, ponderando todas as obrigações adicionais que a contratada deve suportar em relação ao que foi pactuado inicialmente. Após apurado o montante pecuniário dessas obrigações adicionais, deve ser formalizado o competente termo aditivo, em comum acordo entre as partes.
Por fim, em relação à riscos na Lei das Estatais, importante ressaltar breve distinção entre a gestão de riscos prevista nos artigos 6º e 9º da respectiva norma, e a alocação de riscos contratual conforme tratamos até o momento. Vejamos o que nos traz os artigos ora em comento:
Art. 6º O estatuto da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias deverá observar regras de governança corporativa, de transparência e de estruturas, práticas de gestão de riscos e de controle interno, composição da administração e, havendo acionistas, mecanismos para sua proteção, todos constantes desta Lei.
Art. 9º A empresa pública e a sociedade de economia mista adotarão regras de estruturas e práticas de gestão de riscos e controle interno que abranjam: (grifos nossos)
As práticas de gestão de riscos mencionadas nesses dispositivos correspondem aos riscos inerentes às atividades desenvolvidas pela empresa, ou seja, constitui a política de gestão de riscos da estatal, perpassando todas as suas vertentes. Dessa forma, ao que cerne o procedimento licitatório, importante que toda e qualquer contratação possua previamente o gerenciamento de risco como um dos componentes dos estudos preliminares, documento que deve anteceder as contratações, prevendo desde os riscos intrínsecos ao procedimento licitatório, quanto aqueles pertinentes à relação contratual. Todavia, os eventos afetos ao contrato devem ser indicados e estabelecidos em documento apartado anexo ao instrumento contratual.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei das Estatais estabelece parâmetros necessários para a correta organização e atuação das empresas estatais no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
Trata-se de um diploma normativo de extrema importância para a disposição de regras de governança corporativa, transparência na gestão e mecanismos de controle da atividade das estatais, independentemente de serem prestadoras de serviços ou exploradoras de atividade econômica.
E um dos grandes avanços trazidos pela legislação foi a inserção da matriz de riscos nos contratos formalizados pelas estatais, notadamente para as obras e serviços de engenharia nas modalidades de contratação integrada e contratação semi-integrada, mas também aplicável para outros tipos de contratos que exijam posição mais cautelosa por parte da estatal.
Por fim, temos que uma alocação de riscos precisa e objetiva realizada junto aos contratos das estatais será fundamental para a definição das condições do equilíbrio econômico-financeiro do ajuste.
Juliana Vieri é Advogada, especialista em Direito Público com ênfase em gestão pública pelo Damásio Educacional. Pós graduanda em Direito e Processo Tributário pela Escola Paulista de Direito. Pós Graduanda em Direito Digital e Proteção de Dados pela Ebradi. Especializada em Governança, Licitações e Contratos nas Empresas Estatais. Certificada em Licitações e Contratos pela FGV. Certificada em Governança Corporativa pela FGV e pelo IBGC (Instituto Brasileiro de Governança). Assessora Especial na DAE S/A Água e Esgoto de Jundiaí-SP.
Simone Zanotello de Oliveira é Advogada e consultora jurídica na área de contratações públicas. Doutora em Direito Administrativo pela PUC-SP. Mestre em Direito da Sociedade da Informação (ênfase em políticas públicas com o uso da TI) pela UniFMU-SP. Pós-Graduada em Direito Administrativo pela PUC-SP. Possui Certificação CP³P-F (Certificado Profissional Internacional de Parcerias Público-Privadas). Professora de Direito Administrativo e Linguagem Jurídica do Centro Universitário Padre Anchieta – Jundiaí-SP. Gestora de Administração e Gestão de Pessoas da Prefeitura de Jundiaí-SP. Autora de diversas obras na área de contratações públicas.
REFERÊNCIAS
[1] “Art. 173. […] §1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: I – sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade; II – a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários; III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública; IV – a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários; V – os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores”.
[2] CARDOSO, André, G. Governança corporativa, transparência e compliance nas empresas estatais: o regime instituído pela Lei 13.303/2016. In: JUSTEN FILHO, Marçal (org.). Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 96.
[3] GONÇALVES JÚNIOR, Jerson, C.; DICKINSON, Leonardo, C. de C. Vontade da Constituição e crime licitatório do art. 89 da Lei 8.666: ambiente empresarial no capitalismo brasileiro de compadrio, diante do controle judicial penal pós-operação lava jato, e propostas para unir o Brasil contra crise ética, política e econômica nos processos de corrupção de licitação e contratos administrativos. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, v. 4/2018, p. 65-112, jan/mar. 2018 Disponível em: <https://www.revistadostribunais.com.br/maf/app/resultList/document?&src=rl&srguid=i0ad6adc500000172e7d1604f01a9382b&docguid=I0fff2d20178911e89ad2010000000000&hitguid=I0fff2d20178911e89ad2010000000000&spos=3&epos=3&td=5&context=69&crumbaction=append&crumblabel=Documento&isDocFG=false&isFromMultiSumm=&startChunk=1&endChunk=1>. Acesso em 06 jan. 2021.
[4] Maria Sylvia Zanella Di Pietro explica que as relações entre direito privado e direito administrativo não ficaram estáticas no tempo. De um lado, houve a privatização do direito público, em decorrência da busca mais intensa de institutos do direito privado, o que é chamado por alguns de “fuga para o direito privado”. De outro lado, ocorreu a constitucionalização do direito administrativo, ou seja, o Estado interveio, por meio de normas publicísticas, nas relações que eram antes regidas pelo direito privado. Com o crescimento do direito público, este passou a influenciar alguns institutos do direito privado, o que é denominado “publicização do direito civil” (DI PIETRO, Maria, S. Z. Introdução: do direito privado na Administração Pública. In: DI PIETRO, Maria, S. Z. (org.). Direito privado administrativo. São Paulo: Atlas, 2013, p. 6 e 8). Maria João Estorninho também trata do tema da “fuga para o direito privado”, explicando que essa fuga seria uma busca pela dinamização das atividades exercidas pela Administração Pública e pela maior eficiência administrativa, por meio da absorção de institutos e práticas tradicionalmente oriundos do setor privado, ou seja, o objetivo seria fugir do regime jurídico administrativo, notadamente de suas sujeições (ESTORNINHO, Maria, J. A fuga para o direito privado: contributo para o estudo da actividade de direito privado da Administração Pública. Coimbra: Almedina, 1999, p. 360). No entanto, é nosso entendimento que se as regras de direito público existem, de modo geral, para proteger o interesse dos administrados contra uma atuação administrativa realizada com desvio de poder, não restam dúvidas que seu afastamento pode se constituir numa ilicitude.
[5] Nas lições de Ricardo Marcondes Martins: “Dá-se uma contrafação administrativa quando se emprega um conceito no direito administrativo equivocadamente e, ao fazê-lo, invoca-se, consciente ou inconscientemente, um regime jurídico incompatível com a situação qualificada pelo conceito. Quer dizer: a conotação é incompatível com a denotação pretendida. Fixado que o conceito jurídico se reporta a certo regime jurídico, a contrafação ocorre quando se emprega o conceito numa situação incompatível com esse regime” (MARTINS, Ricardo, M. Teoria das contrafações administrativas. Revista Direito Administrativo e Constitucional – A&C, ano 16, n. 64, abril/junho 2016. Disponível em:<http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/241/616>. Acesso em 06 jan. 2021).
[6] MARTINS, Ricardo, M. Estatuto das empresas estatais à luz da Constituição Federal. In: DAL POZZO, Augusto, N.; MARTINS, Ricardo, M. Estatuto jurídico das empresas estatais. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018, pp. 53-69.
[7] BANDEIRA DE MELLO, Celso, A. Curso de direito administrativo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 194.
[8] MARTINS, Ricardo, M. Estatuto das empresas (…), op. cit., p. 42.
[9] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José, A. Lei das estatais: comentários ao regime jurídico licitatório e contratual da Lei 13.303/2016. Belo Horizonte: Fórum, 201, p. 20-21.
[10] MARTINS, Ricardo, M. Estatuto das empresas (…), op. cit., p. 46.
[11] AMARAL, Paulo, O. Lei das estatais: espectro de incidência e regras de governança. In: JUSTEN FILHO, Marçal (org.). Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 65-66.
[12] OLIVEIRA, Fernão, J. DE. Os administradores das empresas estatais. In: JUSTEN FILHO, Marçal (org.). Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 167).
[13] DI PIETRO, Maria, S. Z. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 584.
[14] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José, A. A. Lei das estatais: (…), op. cit., p. 139.
[15] Idem, ibidem.
[16] Idem, p. 138.
[17] PIRONTI, Rodrigo. Desmistificando a elaboração da matriz de riscos nos contratos celebrados por empresas estatais. In: PAULA, Marco, A. Borges DE; CASTRO, Rodrigo, P. A. DE. (Coord.) Compliance, gestão de riscos e combate à corrupção: integridade para o desenvolvimento. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 437.
[18] DAL POZZO, Augusto, N.; FACCHINATTO, Renan, M. Contrato na lei das estatais. In: DAL POZZO, Augusto, N.; MARTINS, Ricardo, M. Estatuto jurídico das empresas estatais. São Paulo: Editora Contracorrente, 2018, p. 259.
[19] CASTRO, Rodrigo, P. A. DE; GONÇALVES, Francine, S. P. Compliance e gestão de risco nas empresas estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018, pp. 101-103.
[20] CASTRO, Rodrigo, P. A. DE; GONÇALVES, Francine, S. P. Compliance e gestão (…), op. cit., p. 103.
[21] GUIMARÃES, Edgar; SANTOS, José, A. A. Lei das estatais: (…), op. cit., p. 139.
[22] BORDA, Daniel, S. Regimes de execução indireta de obras e serviços para empresas estatais. In: Estatuto jurídico das empresas estatais: Lei 13.303/2016. Marçal Justen Filho (org.). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 389.