A gestão documental e as licitações: como funciona a gestão dos documentos licitatórios?
- 19 de fevereiro de 2020
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Tema de extrema relevância e pouca abordagem diz, pois, com a gestão dos documentos produzidos em função e no curso dos procedimentos licitatórios.O que fazer com a miríade de informações que a burocracia transforma documento público?
De acordo com o §2° do art. 216 da Constituição da República, os documentos públicos (no que se incluem os documentos licitatórios) devem submeter-se à política pública de gestão de documentos a ser regulamentada em Lei.
Não tardou e a matéria foi disciplinada pela Lei 8.159/91, a qual instituiu uma espécie de política arquivística[1] destinada a regulamentar a gestão dos documentos públicos. Dentre as muitas disposições ali contidas, convém transcrever as seguintes proposições:
Art. 1º – É dever do Poder Público a gestão documental e a proteção especial a documentos de arquivos, como instrumento de apoio à administração, à cultura, ao desenvolvimento científico e como elementos de prova e informação.
Art. 2º – Consideram-se arquivos, para os fins desta Lei, os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos.
Art. 3º – Considera-se gestão de documentos o conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à sua produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento em fase corrente e intermediária, visando a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente.
Perceba-se que a gestão documental – é dizer a especial tutela dos documentos públicos – compreende uma série de operações técnicas voltadas a racionalizar a produção, tramitação, uso e avaliação dos documentos seja para fins de arquivamento provisório ou definitivo, seja para fins de descarte permanente.
De acordo com essa sistemática os documentos públicos, a depender da espécie e uso, poderão ser identificados como correntes, intermediários e permanentes. Essa “classificação” identifica o documento a uma fase específica e com características próprias. Para compreendê-las melhor, confira-se o que dispõe o art. 8° da Lei 8.159/1991:
Art. 8º – Os documentos públicos são identificados como correntes, intermediários e permanentes.
§1º. Consideram-se documentos correntes aqueles em curso ou que, mesmo sem movimentação, constituam objeto de consultas freqüentes.
§2º. Consideram-se documentos intermediários aqueles que, não sendo de uso corrente nos órgãos produtores, por razões de interesse administrativo, aguardam a sua eliminação ou recolhimento para guarda permanente.
§3º. Consideram-se permanentes os conjuntos de documentos de valor histórico, probatório e informativo que devem ser definitivamente preservados (sem grifos no original).
A lógica que permeia o dispositivo é bastante simples: os documentos inicialmente se identificam com a fase corrente, ou seja, aquela em que eles geralmente estão em uso, seja por referirem-se a um processo em trâmite, por exemplo, seja por conta da necessidade de consultas frequentes. É natural que com o decurso do tempo, a necessidade de consulta se tornará mais episódica e, por isto, nesse momento os documentos passam a identificar-se mais com a fase intermediária. Ultrapassado o perídio de guarda, os documentos poderão ser eliminados ou recolhidos para a guarda permanente.
Importante destacar, que a identificação e o período de duração de cada fase não é estabelecida ao alvedrio de cada Entidade. Antes a Lei 8.159/1991 atribuiu ao Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ) a competência para “classificar” os documentos. Desde então, diversas Resoluções já foram editadas sobre o tema, atualmente vigorando a Resolução 14/2001[2] do CONARQ, que atualizou o Código de Classificação de documentos de arquivo para a Administração Pública e a Tabela de Básica de Temporalidade.
Evidentemente que esse método, hoje já amplamente disseminado, engloba os documentos licitatórios e, como tal, impõe a análise da questão perquirida com o estudo: o que fazer com os documentos licitatórios depois de finalizado o certame?
Cada ente federado dispõe de certa “autonomia” para regulamentar a matéria. Em âmbito federal, por exemplo, o art. 18 do Decreto Federal 4.073/2002 determina que documentos públicos, dentre os quais se incluem os licitatórios, estão fadados a serem analisados por uma Comissão Permanente de Avaliação de Documentos, habilitada para realizar o processo de análise, avaliação e seleção com a devida classificação e observância dos prazos estabelecidos na Tabela de Temporalidade, culminando nos procedimentos de destinação; seja para a guarda permanente seja para a eliminação.
Para se ter uma ideia do ciclo de guarda dos documentos, tome-se como exemplo os documentos relativos à contratação de profissionais autônomos. De acordo com o Código de Classificação de documentos, essa categoria documental enquadra-se no código 029.5 (SERVIÇOS PROFISSIONAIS TRANSITÓRIOS: AUTÔNOMOS E COLABORADORES – inclusive licitações). E, de acordo com a Tabela de Temporalidade, os documentos abrangidos nesta categoria possuem fase corrente durante o período que vigorar a contratação; fase intermediária de 52 anos; e depois de escoado o prazo, têm como destinação final a eliminação. Outro exemplo, são as Portarias de nomeação da Comissão de licitação. Segundo o Código de classificação de documentos, essa categoria de documento é classificada com o código 011 (COMISSÕES. CONSELHOS. GRUPOS DE TRABALHO. JUNTAS. COMITÊS). E, de acordo com a Tabela de Temporalidade, tais documentos possuem fase corrente de 4 anos; fase intermediária de 5 anos; e têm como destinação final a eliminação.
Há, inclusive, salutar precedente do Tribunal de Contas da União (TCU), expressamente, determinando a observância da metodologia e prazos prescritos pelo CONARQ e esclarecendo a serventia da medida em sede de controle externo:
Relatório
(…)
Quanto aos critérios e procedimentos a serem observados para a eliminação de documentos no âmbito dos órgãos e entidades integrantes do Poder Público, a Resolução nº 7/97 – CONARQ (órgão central do Sistema Nacional de Arquivos, criado pela Lei 8.159/91 e destinado a definir a política nacional de arquivos) – prevê o registro dos documentos a serem eliminados, por meio de Listagem de Eliminação de Documentos e de Termo de Eliminação (art. 2º), no qual deverá conter indicação dos atos oficiais/legais que autorizam a eliminação e informação relativa à publicação em periódico oficial (art. 4º). Prevê ainda, no parágrafo único do art. 5º, Edital de Ciência de Eliminação de Documentos, que tem por objetivo dar publicidade, em periódicos oficiais, ao ato de eliminação dos acervos arquivísticos sob a sua guarda. Já a Resolução nº 4/96, também do CONARQ, estabelece prazo para a guarda de documentos em função de categorias, conforme Tabela Básica (em anexo à Resolução) na qual consta que Acordos, Ajustes, Contratos e Convênios deve ter Guarda Permanente.
Conclusões: Obstrução aos trabalhos da Equipe de auditoria, em face ao não atendimento à solicitação de apresentação de processos de dispensa de licitação relativos aos exercícios de 1998 a 2003. Falta de zelo na guarda de documentos. Incineração de documentos em desacordo com a legislação aplicável, em especial, incineração de todos os processos de licitação correspondentes ao período de 1995 a 1997. Como conseqüência o exame não compreendeu todo o período a que se refere a Decisão 1.214/2002 – TCU – Plenário (a partir de 1995). Infringência ao princípio da publicidade, ao disposto no art. 1º da Lei 8.159/91 e às Resoluções nº 04/96 e 07/97 do Conselho Nacional de Arquivo – CONARQ”
Acórdão
(…)
9.3.3. observe, nas atividades de preservação e gestão de arquivos e documentos, incluindo-se as de guarda, conservação e eliminação, a legislação disciplinadora da matéria, em especial, a Lei 8.159/91, regulamentada pelo Decreto 4.073, de 03/01/2002, e pelas normas do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), atentando particularmente, em sede de controle externo, para os prazos dispostos no art. 31, caput, da Instrução Normativa TCU 12/96, relativamente à preservação de documentos necessários à prestação de contas; (sem grifos no original).[3]
Põe-se, agora, a questão de saber qual é o procedimento a ser adotado caso a Administração não disponha de uma Comissão Especializada para avaliação de documentos.
O problema tem a ver com a observância de imperativos constitucionais e legalmente impostos à Administração e os recursos humanos (ou o déficit deles) de que dispõe a gestão administrativa. Ou seja, de um lado há um dever a ser observado e de outro uma série de fatores tendentes a inviabilizar sua consecução.
Com vistas a sanar o conflito em potencial que, inclusive, pode resultar na ineficácia das disposições legais e constitucionais, a lógica impõe que a Administração envide esforços estratégicos, capazes de levar em consideração todas suas limitações e possibilidades. Um exemplo disso seria a diluição do encargo da gestão documental, entre todos os servidores da Entidade, mediante a edição de normas internas que, além de observar os códigos e prazos descritos no Código de Classificação de documentos e na Tabela de Temporalidade do CONARQ, também disciplinasse e orientasse-os sobre os procedimentos a serem adotados para a correta classificação e organização dos documentos. Outrossim, seria possível cogitar da contratação do desenvolvimento de um software que, mediante a inclusão de dados, categorizaria os documentos.
As indicações poderiam ser multiplicadas, mas as já feitas são suficientes para comprovar que existem alternativas a serem adotadas; o que não se pode fazer é negligenciar o cumprimento da Lei, até porque se é verdadeira a premissa de que a gestão pública é acometida por diversas mazelas, não é menos verdadeiro que este fato não escusa a Administração de dar cumprimento aos preceitos legais.
Embora as considerações traçadas no presente estudo não se constituam em novidade, o assunto ganha novos matizes se consideradas as vozes sociais, que conclamam por mais transparência, controle e fiscalização dos atos públicos.
Juliana Miky Uehara é advogada, consultora em licitações e contratos administrativos e Assessora Especial de Gabinete na Prefeitura Municipal de Pinhais/PR.
[1] A expressão “política arquivística” é o conjunto de propostas teóricas e práticas que visam modificar e/ou determinar o modo como as informações, os documentos e os arquivos são organizados”. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/arquivos/tse-gestao-documental-no-tse>. Acesso em: 03/04/18.
[2] Alterada pela Resolução 35/12 do CONARQ.
[3] TCU. Acórdão: 1.182/04 – Plenário.