A inconstitucionalidade material da nova limitação aos benefícios para ME e EPP nas licitações pela nova lei de licitações
- 19 de janeiro de 2024
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos

Surpreendeu-me a pouca discussão jurídica para sabatinar a conveniência ao interesse público, ou até mesmo a constitucionalidade, do art. 4º, §1º e §2º, da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), que restringiu o tratamento diferenciado e favorecido concedido às microempresas e empresas de pequeno porte (ME e EPPs) pelos arts. 42 a 49 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 (“LC123”), que se referem aos incentivos a essas empresas em licitações públicas.
No caso, a Lei 14.133/2021, em seu art. 4º, §1º, expressamente afastou as regras previstas nos arts. 42 a 49, da LC123, nas seguintes situações: (i) “no caso de licitação para aquisição de bens ou contratação de serviços em geral, ao item cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte”; e (ii) “no caso de contratação de obras e serviços de engenharia, às licitações cujo valor estimado for superior à receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte”.
Além disso, o §2º, do art. 4º, da Lei 14.133/2021, ainda trouxe a seguinte e nova limitação aos direitos já consagrados pelos arts. 42 a 49, da LC123:
“§ 2º A obtenção de benefícios a que se refere o caput deste artigo fica limitada às microempresas e às empresas de pequeno porte que, no ano-calendário de realização da licitação, ainda não tenham celebrado contratos com a Administração Pública cujos valores somados extrapolem a receita bruta máxima admitida para fins de enquadramento como empresa de pequeno porte, devendo o órgão ou entidade exigir do licitante declaração de observância desse limite na licitação.”
O art. 4º, §§1º e 2º, da Lei 14.133/2021, trouxe clara limitação ao direito de participação de ME e EPP, pois impediu que estas possam celebrar mais de um contrato administrativo, através dos benefícios concorrenciais concedidos pela LC123, cujo montante, no futuro, possa ultrapassar o limite de enquadramento para ME e EPP – hoje, no montante de 4,8 milhões – ou até mesmo celebrar contrato administrativo – ou item da contratação – cuja estimativa de receita seja superior a esse valor.
Até então, o que importava para fins de concessão dos benefícios concorrenciais para ME e EPPs seria somente averiguação de a receita anteriormente auferida, no ano calendário em referência, não tenha ultrapassado 4,8 milhões, nos termos do art. 3º, II, c/c §9º, da LC123. Ou seja, se a referida empresa não tenha atingido o montante de 4,8 milhões de receita, no respectivo ano-calendário, até a data de apresentação de proposta na licitação, poderia auferir dos incentivos de acesso ao mercado e crescimento trazidos pela LC123 em uma ou várias licitações, mesmo se a receita estimada do contrato administrativo, ou somatório dos contratos administrativos, eventualmente superarem o patamar de 4,8 milhões no mesmo ano-calendário.
Pois bem. Até então, várias ME e EPPs comemoravam contratos com expectativas de ganhos que as tirariam do patamar de “pequenas”, no árduo caminho de tentarem ser “grandes”. Todavia, a partir da aplicação da nova Lei n. 14.133/2021, teremos restrições aos benefícios concorrenciais destinados às ME e EPPs, fazendo com que essas empresas tenham que disputar, em situação de igualdade, com grandes empresas, quando houver contratos administrativos cuja receita estimada poderá ser superior a 4,8 milhões, o que é muito comum.
Inicialmente, confesso que não entendi o interesse público e a conveniência e oportunidade por detrás dessas novas limitações, que geraram, nestes aspectos, e evidentemente, um retorno ao cenário anterior à LC123. Também, não foi possível vislumbrar, nos documentos que instruem o Projeto de Lei que deu origem à Lei n. 14.133/2021, qualquer justificativa pautada no interesse público para possa motivar as referidas restrições novas.
Poucos questionamentos se deram no tocante à constitucionalidade formal do referido dispositivo, considerando que se trataria de lei ordinária que estaria restringindo aspectos materiais trazidas em uma lei complementar. Neste ponto, em poucas passagens, já vislumbramos algumas menções sobre a inexistência de inconstitucionalidade formal, considerando que (i) inexiste hierarquia entre lei complementar e lei ordinária; (ii) que lei complementar pode prever normas de licitações e contratos, cuja competência se exerce através de lei ordinária – razão pela qual a lei ordinária poderia revogar tacitamente disposições de lei complementar nessa matéria – e (iii) que o tratamento diferenciado para ME e EPP em licitações não é matéria de competência exclusiva para a lei complementar, sob o prisma de que o art. 146, III, “d”, da CR88, estaria se referenciando ao tratamento diferenciado em matérias de legislação tributária.
Sem adentrar no mérito da questão de inconstitucionalidade formal, entendemos que estão sendo preteridos relevantes pontos sob o prisma da constitucionalidade material dessa nova restrição. Neste aspecto, compreendemos que o art. 4º, §§1º e 2º são materialmente inconstitucionais. E a inconstitucionalidade se deve em razão de nítida – em nosso modesto entendimento – violação ao núcleo essencial da cláusula constitucional que prevê a necessidade de concessão de tratamento diferenciado para ME e EPPs para atendimento ao objetivo da República pertinente ao desenvolvimento macroeconômico.
Constitui objetivo da República Federativa do Brasil (“CR88”) “garantir o desenvolvimento nacional” (art. 3, II, da CR88). Nesse sentido, dentre as cláusulas da Ordem
Econômica, a CR88 determinou que os entes federativos devem dispensar às ME e EPPs, tal como definido em lei, “tratamento jurídico diferenciado” (art. 179). Esse dispositivo constitucional deixa claro que o propósito para o tratamento diferenciado é “incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas”. As normas gerais sobre o tratamento jurídico diferenciado, pertinentes à favorecimentos tributários, cumprimento de obrigações trabalhistas, como também ao acesso ao mercado, foram estabelecidos pela Lei Complementar n. 123/2006.
As normas relacionadas ao acesso ao mercado e que implicam em vantagens na participação em licitações é, na interpretação constitucional realizada pelo legislador, um prisma do incentivo a ser concedido às ME e EPPs, como decorrência direta da aplicação do art. 179, da CR88, que é o fundamento para tal diferenciação. Caso não houvesse essa determinação constitucional, seriam totalmente vedados todos os benefícios licitatórios conferidos a ME e EPPs, em razão da evidente violação ao princípio da isonomia concorrencial, também de natureza constitucional, que é pilar justificador da realização da licitação.
Logo, é evidente, ao nosso ver, que a Constituição, através do art. 179, determina que o poder público incentive as ME e EPPs por meio de tratamento diferenciado mediante benefícios concorrenciais nas licitações, de forma a impulsionar o crescimento desse porte de empresas no País, visando atender aos objetivos de desenvolvimento nacional. Por isso, através da LC123, definiu-se quais empresas poderiam usufruir dos benefícios, tendo como elemento identificador o status de seu faturamento no momento da disputa licitatória, tendo em vista que a apuração do direito ao benefício se daria pelo faturamento real do último exercício (e não do futuro).
Por isso, pode-se dizer que o núcleo essencial do art. 179, da CR88, é determinar que o Estado tome medidas de incentivo – inclusive nas licitações – que possibilitem o crescimento das ME e EPPs. O que quer o dispositivo é que as pequenas empresas possam ter meios para que consigam serem grandes. E isso condiz com a ratio constitucional de desenvolvimento nacional: considerando que os micro e pequenos empreendimentos são a maioria numérica das atividades empresariais e certamente consubstanciam a classe empresarial que mais emprega no País [1], o desenvolvimento econômico vai ser mais robusto caso tais empresas tenham mais condições de crescimento.
Se o cenário de desenvolvimento de cada ME e EPPs, individualmente, é aprimorado, as repercussões na geração de emprego, renda e arrecadação serão exponenciais, se comparado
ao cenário de perpetuação apenas das grandes empresas. Essa é a ideia central do tratamento favorecido trazido pela CR88. Somente com o crescimento das ME e EPPs é que se homenagearão os objetivos pretendidos pela proteção dos pequenos empreendimentos, com o aumento da geração de emprego, renda e arrecadação pública, em um maior nível de escala.
Sendo incontestável essa premissa, também se torna incontestável, ao nosso ver, a inconstitucionalidade do art. 4º, §1º e §2º, da Lei 14.133/2021. Ao impedir que as ME e EPPs tenham direito ao tratamento jurídico diferenciado (tal como já era contemplado antes) quando disputarem por contratos que, no futuro, lhe garantam receita que as alterem de patamar, os referidos dispositivos atentam diretamente contra o núcleo essencial do art. 179, da CR88. Isto, porque, o efeito das novas regras é criar medida jurídica para perpetuar o enquadramento das ME e EPPs. É de se dizer, as novas regras propagam, em um aspecto objetivo, o interesse que as ME e EPPs sejam para sempre “pequenas”, mas nunca “grandes”.
Com efeito, se as MEs e EPPs somente podem ter o tratamento jurídico diferenciado nas licitações quando disputarem contratos de menor vulto, ou quando não tiverem celebrado outros contratos administrativos que as façam superar, no futuro, o limite financeiro para seu enquadramento, tais empresas serão desincentivadas ao crescimento.
Neste aspecto, não se busca argumentar que as novas limitações da concessão dos benefícios para MEs e EPPs sejam uma decisão legislativa ruim (apesar de entendermos que sim). As limitações criadas pela Lei n. 14.133/2021 extrapolaram a discricionariedade conferida ao legislador para ofender a normatividade material do referido dispositivo constitucional. A discricionariedade do legislador poderia se expressar de inúmeras formas nesse cenário, como, por exemplo, na definição dos critérios de faturamento e forma para fins de enquadramento, na especificação dos benefícios previstos, dentre outros.
Todavia, ao estabelecer uma vedação da concessão dos benefícios em razão de um raciocínio prospectivo – ou seja, em razão dos efeitos que terão para o crescimento da empresa e vista do histórico de seu faturamento – enseja-se inarredável contrassenso à finalidade constitucional sobre o dever de se buscar incentivar o desenvolvimento de ME e EPPs. Analogamente, no prisma do tratamento fiscal favorecido, seria o mesmo de vedar determinadas ME e EPPs de recolherem no regime especial de tributação caso se constate que o tratamento favorecido possa criar estruturas que permitam que a empresa se desenvolva e supere a marca que a defina como empresa de pequeno porte.
Assim, é inegável que a definição para estabelecer o critério de enquadramento em razão do faturamento, deve levar em consideração apenas o passado e não a visão prospectiva do futuro – que é justamente aonde se quer chegar com o tratamento favorecido. Por isso, a violação à finalidade do dispositivo constitucional é clara, gerando para tais alterações, o vício de constitucionalidade material.
Não se olvida, neste entendimento, o direito da Administração Pública em deixar aplicar as regras do tratamento jurídico diferenciado nas licitações para as ME e EPPs quando “não for vantajoso para a Administração Pública ou representar prejuízo ao conjunto ou complexo do objeto a ser contratado”, tal como disposto no art. 49, III, da LC123. Todavia, tais dispositivos se apresentam como “exceções” às regras gerais, razão pela qual devem ser devidamente justificados os motivos que demandam o afastamento dos referidos benefícios. E tais justificativas tangenciam tão somente a apuração do cumprimento de determinada necessidade da Administração Pública.
Contudo, as vedações trazidas art. 4º, §1º e §2º, da Lei 14.133/2021 não têm o condão de guarnecer o atendimento a uma necessidade da Administração Pública, tampouco é possível dizer isso de forma genérica e indiscriminada. Ademais, não se vislumbra outro raciocínio positivado por esses dispositivos senão impedir a concessão dos benefícios previstos às MEs e EPPs em determinadas situações fáticas que viabilizem a estas deixarem de ser de “pequeno porte”.
Enfim, a inconstitucionalidade é evidente. E, para concluir, é de se reprisar a ausência de justificação de conveniência e interesse público em tais novas vedações, que têm o condão de apenas favorecer o acesso ao mercado às grandes e consolidadas empresas.
Murilo Melo Vale é Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi professor de Direito Administrativo e Gestão Pública na UFMG e Professor Visitante da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor de Direito Administrativo em diferentes instituições de ensino. Vice-presidente da Associação Mineira de Direito e Economia. Advogado.
[1] Segundo o SEBRAE, as Micro e Pequenas Empresas “têm sido responsáveis, nos últimos anos, por sete em cada 10 novos empregos gerados no país” (https://agenciasebrae.com.br/economia-e-politica/volume-de-pequenos-negocios-soma-3-milhoes-de-registros-no-acumulado-do-ano/)