A nova inovação pública é aberta, digital e legal
- 19 de agosto de 2021
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
“O otimista é um tolo. O pessimista, um chato.
Bom mesmo é ser um realista esperançoso”.
Essa frase do gênio Ariano Suassuna resume a proposta deste artigo, que defende o avanço da inovação no serviço público e qual a importância dos novos instrumentos legais para a solução de problemas coletivos e a evolução da economia criativa do país.
Os recursos para investimentos em inovação no país têm aumentado, os desafios das amarras jurídicas têm sido vencidos e esses incentivos têm facilitado o surgimento de soluções lucrativas para problemas coletivos. Mas ainda falta às instituições do Estado compreender e exercitar plenamente o seu papel no fomento à inovação aberta, mudando a sua perspectiva histórica diante de uma enganosa exclusividade no entendimento e na solução de problemas públicos.
O momento e o ambiente talvez nunca tenham sido tão favoráveis. A pandemia pressionou por projetos e iniciativas que surgiram em ambiente desfavorável, leis modernas estabeleceram nítidos avanços rumo à segurança jurídica e o mercado das startups e das empresas de tecnologia brasileiras evoluem a olhos vistos.
A Lei do Governo Digital (14.129/2021) e o Marco Legal das Startups (LC 182/2021) são os maiores representantes deste novo momento, pois vincularam a operação eficiente da Administração Pública ao uso inteligente da tecnologia, ao valor das informações públicas para a nova economia e a abertura para contratação de empresas tecnológicas pelo estado.
Muitos artigos têm explorado as características destes novos normativos, onde se destacam novas estruturas organizacionais e procedimentos para a contratação de soluções inovadoras a partir da perspectiva dos problemas ainda não resolvidos e das opções tecnológicas ainda não exploradas.
Apesar das dificuldades, o Brasil vive um bom momento no ecossistema de startups e no mercado de empresas de tecnologia. Exemplos recentes evidenciam a evolução, como a aquisição da Dextra pela CI&T, formando um conglomerado de tecnologia brasileiro especializado em transformação digital, até o volume crescente de recursos captados em 2021 por startups brasileiras – US$ 3,2 bilhões até o mês de maio, com destaque para as Fintechs.
Especificamente sobre as startups govtechs, o número também cresce. Segundo Letícia Picolotto, presidente do conselho da BrazilLab – primeiro hub de inovação Govtech do Brasil, são relevantes os dados da relatório “As startups Govtech e o futuro do governo no Brasil”, elaborado pelo BrazilLAB e pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF). O estudo conclui que do total de startups existentes no Brasil, até 1.500 teriam potencial para atuação no mercado Business to Government (B2G) caso desejassem ofertar suas soluções tecnológicas para os governos. Atualmente, são 80 as startups govtechs consideradas como mais relevantes.
Confirmando a tendência de crescimento do mercado, a empresa de capital de risco KPTL criou um novo fundo de financiamento dedicado exclusivamente às govtechs. Segundo Renato Ramalho, sócio e CEO da KPTL, “a meta é captar cerca R$ 200 milhões para investir em 20 a 25 startups que já tenham negócios em andamento em uma das três esferas de governo – federal, estadual e municipal. A ideia é usar parte dos recursos não só para fazer os primeiros investimentos nos empreendimentos, mas também para acelerar os que se mostrarem mais promissores”.
Para aproveitar o momento e o cenário positivos, as organizações públicas precisam compreender os benefícios e reconsiderar os riscos da sua operação a partir da existência e da disponibilidade de empresas mais capazes de auxiliar na solução de problemas coletivas.
Em suma, será preciso amadurecer digitalmente as instituições do Estado, o que implica em mudanças organizacionais e culturais que reconheçam o valor o investimento no entendimento dos problemas segundo uma nova perspectiva tecnológica e do repensar sobre a exclusividade das soluções. Para muito além da governança de tecnologia da informação ou sistemas de processos eletrônicos, os resultados devem ser repensados sob a ótica do uso de novas tecnologias para problemas ajustados, diferentes do que hoje são endereçados.
Quem separa tecnologia de negócios está confortável com o passado e despreparado para o presente. Por desconhecimento, ignorância, ego ou a combinação livre destes.
Os maiores benefícios na jornada de maturidade digital das organizações públicas são o estímulo à abertura, o desenvolvimento da capacidade de entender o alcance do impacto das tecnologias e uma oxigenação sobre novas percepções sobre os problemas complexos e desafiadores como são os públicos.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio do seu programa BNDES Garagem, promove a aceleração de startups que apresentem soluções de impacto para a resolução de desafios sociais e ambientais. É a segunda edição do programa, que neste ano prioriza soluções no segmento de saúde, educação, sustentabilidade, cidades sustentáveis e govtech.
Especificamente para o caso das startups govtech, o programa contou a participação dos especialistas Eduardo Spanó e Marcelo Facchina para produzir um documento que apresenta os principais desafios e problemas mais relevantes sugeridos nesta vertente. Digitalização de serviços, eficiência na gestão de recursos públicos e plataforma de gestão de dados são exemplos de temas sugeridos para que as startups govtech sugiram novas ideias e produtos.
Outro exemplo relevante de estímulo ao empreendedorismo pelo Estado é liderado pelo LIFT – Laboratório de Inovações Financeiras e Tecnológicas, iniciativa pioneira do Banco Central do Brasil. Ao se estruturar em conjunto com o mercado para fomentar a inovação no Sistema Financeiro Nacional (regulado pelo próprio banco), o LIFT se intitula um ecossistema de inovação. Desde 2018 vem promovendo o empreendedorismo como um hub de inovação, aproximando empresas de projetos promissores e fomentando eventos e capacitações.
A lei do governo digital, sancionada em 2021, autorizou expressamente a criação dos laboratórios de inovação. Segundo as diretrizes da lei, eles funcionariam como um centro de gestão de inovação, de promoção de projetos inovadores e de mudança cultural.
O Colab-i – laboratório de inovação do Tribunal de Contas da União (TCU), em parceria com a Agência Espacial Brasileira, identificou práticas, riscos e executou procedimentos que viabilizaram a contratação de uma encomenda tecnológica, usando o Marco Legal de Inovação (Lei Complementar 182/2021). Entre os vários resultados, uma extensa lista de riscos e boas práticas aprendidas no processo estão documentadas e disponíveis aos interessados em iniciar a jornada.
A inovação aberta estimula que a reflexão sobre os problemas e a busca por tecnologias de fronteira sejam realizadas em conjunto com empresas especializadas.
No mundo público, onde o princípio da legalidade é mandatório, o Marco Legal das Startups previu uma nova modalidade de licitação, a figura dos contratos públicos para solução inovadora e o contrato de fornecimento. Em alguma medida, os procedimentos representam as fases de experimentação, validação de um produto mínimo viável e a evolução do produto validado O valor máximo de R$ 1,6 milhão por contrato público de solução inovadora, previsto na lei para testes das soluções existentes em problemas concretos, é um montante que pode atrair interessados do ecossistema das govtechs para validar suas soluções e financiar suas operações.
Além de autorizar, o novo marco legal das startups incentiva a inovação aberta pela Administração Pública e reforça a necessidade de utilizar o poder de compra do Estado para estimular a o empreendedorismo. Mas a responsabilidade de fazer a lei “pegar ou não” é, também, das próprias instituições públicas. A parceria com o mercado de tecnologia para atuar em soluções inovadoras para problemas coletivos será tão bem-sucedida quanto for a capacidade do Estado de entender profundamente, a partir da lente de outros atores, os problemas que precisa enfrentar. De maneira pragmática, o primeiro passo essencial para inovar verdadeiramente é conhecer profundamente o problema que precisa ser enfrentado.
Todo cuidado é necessário para evitar o risco comum no ambiente de inovações disruptivas: superestimar os benefícios do curto prazo e subestimar os de longo. A propósito, não é demais imaginar soluções simples (não simplistas!) e criativas podem ser adequadas a muitos dos problemas públicos ainda em aberto.
Segundo a perspectiva da Netflix, referência do estilo digital anti-burocrático, a cultura é função de quem você contrata e demite. No caso de organizações públicas, a nova cultura poderá ser construída em função das suas relações com o mercado empreendedor, íntegras e em busca de uma evolução sustentada em tecnologia e inovação.
*As opiniões contidas no texto são pessoais e não expressam o posicionamento institucional do Tribunal de Contas da União.
Wesley Vaz é Secretário de Fiscalização de Integridade de Atos e Pagamentos de Pessoal e de Benefícios Sociais do Tribunal de Contas da União e professor convidado da Fundação Dom Cabral. Possui certificado em estratégia e inovação pelo MIT e mestrado em computação pela Unicamp. Co-autor do livro “A descomplicada contratação de TI na Administração Pública”.
Texto originalmente publicado no Portal Jota.Info