A venda de Atas de Registro de Preços caracteriza irregularidade?
- 17 de março de 2020
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Introdução
O Sistema de Registro de Preços – SRP é um conjunto de procedimentos pós licitatórios, para o registro formal de preços visando contratações eventuais e futuras, caracterizando-se também como procedimento pré-contratual. A sua utilização é prevista desde o advento do Decreto nº 2.300, de 21 de novembro de 1986[1], para adoção quando for possível e conveniente para a Administração Pública. Atualmente o SRP constitui-se como hipótese preferencial para a realização de contratações de bens e serviços[2], devendo ser adotada sempre que possível, nos termos do regulamento.
Parecer nº 10/2013-CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU[3]
O Sistema de Registro de Preço goza de preferência legal, quando constatadas uma das hipóteses previstas no [regulamento]; poderá ser afastada preferência do Sistema de Registro de Preço nos casos em que reste comprovada nos autos da contratação a ineficiência econômica ou gerencial decorrentes da adoção do registro de preços.
No entanto, mesmo não se tratando propriamente de uma novidade, o uso do SRP ainda suscita diversas dúvidas, especialmente em relação ao uso da Ata de Registro de Preços – ARP por órgão não participante da licitação.
No presente texto, faremos uma breve análise acerca do “mercado de venda de atas”, na intenção de trazer esclarecimentos úteis para que os gestores possam extrair os melhores benefícios deste instrumento.
O Sistema de Registro de Preços
Inicialmente, cabe-nos discorrer acerca do Sistema de Registro de Preços e sua aplicabilidade. O SRP[4] pode ser definido como um sistema de catalogação de preços de compras de bens ou serviços padronizados através de licitação, formalizado sob as modalidades concorrência ou pregão, em que após a homologação, a Administração Pública não está obrigada a celebrar o contrato e sim uma Ata de Registro de Preços. E caso, oportunamente, venha a Administração necessitar dos produtos ou serviços registrados, poderá ser celebrado o respectivo contrato administrativo, na forma prevista em lei: termo de contrato, nota de empenho, carta contrato, ordem de fornecimento, ordem de execução dos serviços etc.
Trata-se, assim, de procedimento amplamente utilizado pela Administração Pública, haja vista as vantagens que, em determinadas situações, proporciona à contratante. Cristiana Fortini[5] tece o seguinte comentário sobre o sistema de registro de preços:
“O SRP surge como uma forma de dinamizar e tornar mais eficiente as contratações públicas. Uma única licitação pode gerar instrumento obrigacional (ata) assinada pelo vencedor da licitação que se compromete a, uma vez acionado, atender à demanda, fornecendo o produto ou prestando o serviço, observadas as quantidades e as especificações contidas no ato convocatório e seus anexos, ao longo do prazo de validade da ata.”
Um dos principais objetivos do registro de preços é a exaltação ao princípio constitucional da eficiência[6], pois com os preços registrados haverá uma celeridade no procedimento de aquisição ou contratação, pois caso a Administração venha demandar efetivamente os produtos e serviços, bastará celebrar o termo de contrato.
Outro ponto relevante do SRP é a possibilidade de que outros órgãos (que não participaram da licitação), contratem com o fornecedor registrado como vencedor do certame, a esse órgão é dado o nome de “Órgão não participante” ou, como a doutrina denomina, “carona”.
No âmbito da União, o termo “carona”, surgiu com o advento do Decreto Federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, que em seu texto afirmou que, após realização de um procedimento licitatório, qualquer órgão ou entidade pertencente à Administração Pública e que não tenha participado do certame poderia, mediante prévia consulta ao responsável pelo procedimento, acionar o licitante registrado como vencedor (fornecedor), desde que devidamente comprovada a vantajosidade da adesão[7].
Em suma essa prática, comumente denominada “carona”, visa permitir que órgãos e entidades públicas não participantes de uma licitação, após consultar o órgão gerenciador e o fornecedor registrado, celebrem contratos fazendo uso da ata de registro de preços de outra entidade.
Atualmente o SRP é regulamentado no âmbito da Administração Pública Federal através do Decreto nº 7.689, de 23 de janeiro de 2013, que implementou alterações em relação ao regulamento anterior, incorporando entendimentos do Tribunal de Contas da União e outras soluções levantadas ao longo dos mais de dez anos de aplicação do regulamento anterior.
Vale registrar que com o advento do Decreto Federal nº 9.488, de 30 de agosto de 2018, houve alterações nos limites para a adesão a ata de registro de preços, prazo para manifestação de interesse e a necessidade de estudo prévio para as denominadas “caronas”. O limite individual para adesões dos órgãos não participantes era de 100% dos quantitativos dos itens do instrumento convocatório e registrados na ata de registro de preços, com a mudança instituída pelo Decreto em comento, houve uma redução de 100% para 50%. O limite global, ficou estabelecido que a soma do quantitativo de todas as adesões poderia atingir, no máximo, o quíntuplo da quantidade registrada em ata, com a alteração promovida pelo novo decreto foi alterado este limite a apenas ao dobro do quantitativo registrado a cada item. Por fim, e não menos importante, é necessário que o órgão denominado “carona” apresente ao órgão gestor da ARP estudo prévio que demonstre o ganho de eficiência, a viabilidade e a economicidade para a administração pública da utilização daquela ata.
A natureza jurídica da Ata de Registro de Preços
Diferentemente do que ocorre em uma licitação “tradicional”, onde após a homologação do certame cria-se a expectativa de direito em ser contratado, no certame para Registro de Preços o fornecedor selecionado apenas assina uma Ata, comprometendo-se a fornecer o objeto registrado pelo prazo de até um ano, naquelas condições pactuadas. Ou seja, não há de se falar, de plano, em criação de obrigação de executar o objeto, mas simplesmente um compromisso para eventual contratação futura.
Com isto, não podemos confundir a ARP com o contrato administrativo, já que, este sim, gera obrigações de dar ou de fazer, conforme o objeto contratado. Tanto é que, no regulamento federal do Registro de Preços, diferencia-se claramente os limites de vigência e alteração da Ata e de contrato. A ARP pode ser prorrogada somente se o período inicial de vigência for inferior a doze meses, sendo defeso que os períodos de vigência somados ultrapassem um ano. A prorrogação somente poderá ser feita dentro do prazo de validade da ata, após o encerramento da sua vigência, precluso está a possibilidade. Já o contrato decorrente da Ata poderá ter sua vigência prorrogada por até 60 (sessenta) meses, se o objeto for caracterizado como serviço continuado, nos termos do art. 57 da Lei 8.666/1993. E em relação às alterações, elas não são permitidas na Ata, como é o caso do aditivo de até 25% previsto na lei em relação ao contrato administrativo.
Por mais que a ARP constitua obrigação entre a Administração e o licitante vencedor do certame, tais obrigações não se confundem com aquelas decorrentes de um contrato administrativo. Ou seja, não podemos aplicar à Ata as mesmas regras legais aplicáveis ao contrato administrativo, especialmente em relação à sua extinção por execução do objeto, como ocorre com o contrato de escopo. É que, no edital da licitação para o SRP, consta previsão expressa de que a Ata poderá ser utilizada não só pelo órgão gestor e demais participantes, mas também por órgãos não participantes, que manifestem interesse e atendam aos requisitos regulamentares. Com isto, os quantitativos registrados em uma Ata não são os únicos quantitativos previstos em edital como passíveis de contratação. Some-se aí também os quantitativos previstos a título de “carona” na ARP.
As condições de elaboração da proposta e a vinculação ao instrumento convocatório
Quando da preparação da fase interna de uma Licitação, a Administração estipula condições e regras que deverão ser seguidas por aqueles possíveis interessados em participar da Licitação e por ela mesma. É no Edital e no Termo de Referência, que são previstas estas regras. Assim, quando da formulação da proposta de preço, por um exemplo, o licitante interessado ele deve analisar todas as condições de fornecimento, todas as regras e demais informações necessárias para a correta apresentação de sua proposta de preços.
A Lei 8.666/93 em seu art. 3º, cita alguns princípios basilares de uma contratação, dentre eles o da vinculação ao instrumento convocatório, vejamos:
Art. 3º A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (destaque nosso).
Com o status de norma que regula o procedimento de seleção do fornecedor, o Edital é o artefato do processo administrativo de contratação que traz em seu bojo as condições para a elaboração de uma proposta de preços, por quem porventura tome conhecimento do certame e dele queira fazer parte.
Segundo dispõe o doutrinador Marçal Justen Filho[8], imperioso registrar que o registro de preços produz um vínculo jurídico entre a Administração e o licitante vencedor. Trata-se de uma natureza jurídica contratual, que se peculiariza por se tratar de uma espécie de contrato preliminar.
Desta feita, se a Administração planejou uma licitação na qual ficou prevista as condições de uma possível carona, fica, esta, vinculada pelas condições obtidas na licitação e formalmente previstas na ata. Ou seja, não se pode frustrar a legítima expectativa de direito de quem formulou as proposta contando que poderia “vender” a ata aos possíveis interessados. Afinal de contas, tanto a proposta inicial dos licitantes que acodem ao certame, quanto os lances ofertados na etapa de disputa do pregão, são realizados com base nas condições fixadas inicialmente no edital, incluindo tanto a especificação do objeto em si, quanto informações relevantes para a elaboração da proposta, como a logística de suprimento ou condições de execução do serviço, as quantidades estimadas, o local de entrega ou execução do objeto e também a previsão de órgãos participantes e permissão ou não de carona.
O volume de bens ou serviços efetivamente colocado em disputa na licitação é composto tanto do total a ser registrado para o órgão gerenciador, quanto dos volumes previstos para os eventuais órgãos participantes e também o volume permitido para caronas. Ou seja, a disputa realizada no certame inclui todas estas quantidades previstas no edital, já que são potenciais contratações futuras.
Ressalte-se que tanto para o total registrado para os órgãos gestor e participantes, quanto para o total de caronas previsto no edital, não há obrigação da Administração firmar contratações. Nisto tanto um quanto os outros quantitativos em nada diferem entre si, caracterizando todos, indistintamente, meras expectativas de contratação.
No entanto, a venda da ata deve ser feita de forma a cumprir todos os requisitos exigíveis, como a anuência do fornecedor, comprovação da vantajosidade e o não comprometimento da execução do quantitativo registrado, e demais regimentos necessários à consecução pretendida.
A venda de atas e a expectativa de direitos
O Decreto Federal 7.892/2013, em seu art. 22, admitiu a utilização do registro de preços por órgãos e entidades que não participaram da licitação, desde que eles justifiquem a vantagem.
Art. 22. Desde que devidamente justificada a vantagem, a ata de registro de preços, durante sua vigência, poderá ser utilizada por qualquer órgão ou entidade da administração pública federal que não tenha participado do certame licitatório, mediante anuência do órgão gerenciador.
Nas regras do regulamento federal, cada órgão não participante pode contratar com o fornecedor do preço registrado na ata de registro de preços, até 50% do quantitativo ali registrado, limitado a 200% no somatório de todas a adesões autorizadas pelo órgão gestor. Vale lembrar que este acionamento não interferirá nos quantitativos dos donos da ata, visto que o próprio art. 22, em seu §2º, informa que o fornecedor optará pela aceitação ou não da adesão, sem que resulte em prejuízos para os realizaram o procedimento:
§2º Caberá ao fornecedor beneficiário da ata de registro de preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento decorrente de adesão, desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes.
Assim sendo, para a formalização da adesão a ata de registro de preços, cabe ao órgão interessado comprovar, de forma expressa, a vantagem (art. 22, caput, Decreto federal 7.892/2013) da adesão em detrimento da instauração da licitação, além de observar os trâmites correspondentes ao procedimento.
Além disso, “caberá ao fornecedor beneficiário da ata de registro de preços, observadas as condições nela estabelecidas, optar pela aceitação ou não do fornecimento decorrente de adesão, desde que não prejudique as obrigações presentes e futuras decorrentes da ata, assumidas com o órgão gerenciador e órgãos participantes” (art. 22, §2º).
Esclarecemos, pois, que para atuar como “carona”, faz-se necessário o cumprimento de três requisitos básicos, nos termos do art. 22, §§ 1º e 2º, do Decreto Federal nº 7.892/13, a saber: a) demonstração da vantajosidade da adesão, em detrimento da realização de um novo procedimento licitatório ou outra forma de contratação possível no caso concreto; b) anuência do órgão gerenciador; c) concordância do fornecedor vencedor da ata.
Importante registrar que, por força do §6º do art. 22 do Decreto 7.892/13, o órgão não participante deverá efetivar a aquisição ou contratação solicitada em um prazo de até noventa dias, observado o prazo de vigência da ata, devendo ser realizado dentro do prazo de validade dessa. Esse prazo, de forma excepcional pode ser prorrogado caso seja solicitado pelo carona e desde que autorizado pelo órgão gerenciador, vejamos o disposto no art. 5º, inciso XI, do citado Decreto:
Art. 5º Caberá ao órgão gerenciador a prática de todos os atos de controle e administração do Sistema de Registro de Preços, e ainda o seguinte:
XI – autorizar, excepcional e justificadamente, a prorrogação do prazo previsto no §6 º do art. 22 deste Decreto, respeitado o prazo de vigência da ata, quando solicitada pelo órgão não participante.
Conclusão
Diante de todo o exposto, conclui-se que a venda de atas de registro de preços não caracteriza irregularidade, desde que cumprida uma série de procedimentos. Tem sua primeira regulamentação quando da publicação do Decreto Federal nº 3.931, de 19 de setembro de 2001, que em seu texto afirmou que, após realização de um procedimento licitatório, qualquer órgão ou entidade pertencente à Administração Pública e que não tenha participado do certame poderia, mediante prévia consulta ao responsável pelo procedimento, acionar o licitante registrado como vencedor (fornecedor), desde que devidamente comprovada a vantajosidade da adesão.
Em suma essa prática, comumente denominada “carona”, visa permitir que órgãos e entidades públicas não participantes de uma licitação, após consultar o órgão gerenciador e o fornecedor registrado, celebrem contratos fazendo uso da ata de registro de preços de outra entidade.
Diferentemente do que ocorre em uma licitação “tradicional”, onde após a homologação do certame cria-se a expectativa de direito em ser contratado, no certame para Registro de Preços o fornecedor selecionado apenas assina uma Ata, comprometendo-se a fornecer o objeto registrado pelo prazo de até um ano, naquelas condições pactuadas. Ou seja, não há de se falar, de plano, em criação de obrigação de executar o objeto, mas simplesmente um compromisso para eventual contratação futura.
Desta feita, se a Administração planejou uma licitação na qual ficou prevista as condições de uma possível carona, fica, esta, vinculada pelas condições obtidas na licitação e formalmente previstas na ata. Ou seja, não se pode frustrar a legítima expectativa de direito de quem formulou as proposta contando que poderia “vender” a ata aos possíveis interessados.
No entanto, a venda da ata deve ser feita de forma a cumprir todos os requisitos exigíveis, como a anuência do fornecedor, comprovação da vantajosidade e o não comprometimento da execução do quantitativo registrado, e demais regimentos necessários à consecução pretendida.
Ronaldo Corrêa é servidor público federal, graduado em Logística pela Universidade Estácio de Sá, pós-graduando em Direito Administrativo e Gestão Pública pela Unyleya e foi aluno do Mestrado Profissional em Administração Pública (Profiap) na Universidade Federal de Sergipe (UFS). É comprador público e instrutor de cursos de capacitação no Programa de Gestão da Logística Pública da Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Atua desde 2009 como moderador da comunidade virtual de práticas Nelca, que congrega milhares de compradores públicos de todo o país.
Thalisson Batemarque é servidor público municipal, graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e pós-graduado – MBA em Licitações e Contratos pela Faculdade FAEL. Possui sólidos conhecimentos práticos e teóricos em Licitações e Contratos, com atuação na área há 5 anos desenvolvendo funções tais como, Pregoeiro, Auditor, Consultor e Assessor Jurídico.
[1] Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2300-86.htm#art14. Acessado em 10/02/2020 às 20:09.
[2] Conforme consta positivado no art. 15 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993:
Art. 15. As compras, sempre que possível, deverão:
II – ser processadas através de sistema de registro de preços;
[3] Disponível em http://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/238680. Acessado em 10/02/2020 às 20:08.
[4] Art. 2º […] I – Sistema de Registro de Preços – conjunto de procedimentos para registro formal de preços relativos à prestação de serviços e aquisição de bens, para contratações futuras; do Decreto 7.892/2013
[5] FORTINI, Cristiana, Registro de Preços – Análise da Lei nº 8.666/93, do decreto federal nº 7.892/13 e de outros atos normativos. 1. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 39.
[6] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…) (grifos nossos).
[7] SOUZA, Augusto César Nogueira – A possibilidade de utilização do “carona” no Sistema de Registro de Preços – SRP, SLC Ano 2 #18. Setembro 2019, p. 53.
[8] Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 17.ª edição revista, Marçal Justen Filho.