Breves apontamentos sobre a relação entre a prorrogação ordinária dos contratos de concessão e o dever de licitar
- 4 de fevereiro de 2022
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
A dificuldade do Estado brasileiro em alocar recursos próprios em projetos de infraestrutura e a necessidade de atrair investimentos privados para essa área, por meio de contratos de concessão, contrasta com a complexidade dessa espécie de instrumento contratual e com a insegurança jurídica que permeia o ambiente nos quais eles são firmados e executados.
Nesse contexto de complexidade, tema dos mais polêmicos consiste na possibilidade de contratos de concessão serem prorrogados ordinariamente, em casos onde não há necessidade de se reequilibrar a equação econômico-financeira da avença.
Há um senso comum apontando para a premissa de que o contrato de concessão tem sua vigência original fixada para garantir que a concessionária amortize os investimentos realizados em função do projeto e aufira a margem de lucro originalmente pactuada[1], e que se esse estado de coisas se materializa no caso concreto, não há justificativa para a prorrogação de prazo de vigência.
Para os defensores dessa corrente, a prorrogação do contrato de concessão só é cabível quando sua finalidade for realinhar a equação econômico-financeira de contrato impactada pela materialização de riscos cujos efeitos financeiros não são oponíveis à concessionária.
Na impossibilidade de se auferir a margem de lucro pactuada, dentro do período de vigência contratual fixado inicialmente, a concessionária poderia pleitear a extensão desse prazo, de modo a perceber receita por mais tempo, e, com isso, evitar prejuízos injustificados.
Afora essa hipótese, o dever de licitar se imporia como regra em relação à decisão de estender o prazo de vigência do contrato, vinculando assim a decisão do agente público competente.
Com todo o respeito a quem assim pensa, mas tal posição não encontra amparo no ordenamento jurídico.
O dever de licitar, apontado como “regra” por grande parte da doutrina e da jurisprudência, em verdade convive horizontalmente com outras providências legitimamente colocadas à disposição do gestor público no tocante à gestão das contratações públicas.
Essa afirmação é comprovada pela simples leitura do art. 37, inc. XXI, da Constituição Federal, o qual coloca lado a lado o dever de licitar e “[…] os casos [de dispensa e inexigibilidade de licitação] especificados na legislação […]”.
O mesmo dever de licitar gera efeitos em paralelo ao art. 175, parágrafo único, I, da Carta Magna, o qual impõe ao legislador o dever de criar normas infraconstitucionais acerca do caráter especial do contrato de concessão e de sua prorrogação. Dever cumprido por ocasião da promulgação da Lei nº 8.987/95, cujo art. 23, inc. XII, da Lei nº 8.987/95, segundo o qual é cláusula essencial e obrigatória a todo contrato de concessão aquela que discipline as condições para a sua prorrogação.
O ponto a ser destacado é o seguinte: não há, na Constituição Federal, qualquer indício da existência de uma relação de hierarquia normativa entre o dever de licitar e outras formas de solucionar uma necessidade pública por meio de uma relação contratual com terceiro.
Melhor dizendo, o dever de licitar não é normativamente preferencial em relação a uma contratação direta[2], ou à decisão de prorrogar um contrato de concessão já firmado.
Assim, é possível afirmar que o dever de licitar coexiste com a possibilidade de se prorrogar ordinariamente um contrato de concessão, e que ambas as decisões podem ser igual e legitimamente utilizadas, de forma motivada e observadas as peculiaridades do caso concreto, pelo gestor público.
RAFAEL VÉRAS DE FREITAS e LEONARDO COELHO RIBEIRO já expuseram essa conclusão em artigo escrito em coautoria:
É que se, por um lado, o texto constitucional exige a realização de procedimento licitatório para a outorga de concessões, por outro, admite a sua prorrogação, sem a realização desse processo de seleção. Daí por que o argumento de que eventual extensão do prazo contratual seja uma burla ao procedimento licitatório não tem fundamento, seja por que o próprio art. 174 prevê a possibilidade de prorrogação, sem descer a mais detalhes, seja porque a já referida incompletude impõe a constante adaptação desses contratos. Demais disso, a licitação – tal como a concorrência – não é um fim em si, mas um instrumento para que a Administração selecione a melhor proposta no mercado. Nesse sentido, se a melhor proposta, consubstanciada no melhor padrão do serviço, é o que vem sendo executado pelo concessionário, seria antípoda ao interesse público interditar a extensão de seu prazo. Em termos diretos: não seria minimamente razoável “licitar por licitar”[3].
O tema, é claro, merece aprofundamento, sobretudo porque a possibilidade de se manter vigentes contratos de concessão já firmados pode ser uma alternativa interessante à crise econômica agravada pelos efeitos da pandemia da COVID-19, a qual afetou profundamente a capacidade de investimentos de diversos agentes atuantes no setor da infraestrutura.
Pedro Henrique Braz De Vita é Doutorando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation). Advogado. Professor do Centro Universitário UniOpet.
[1] Nesse sentido, cita-se FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO: “A presunção subjacente à concessão é que o particular satisfaça sua perspectiva de ganho explorando o objeto concedido pelo prazo originalmente pactuado”. (MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Concessões. Belo Horizonte: Fórum, 2015. pp. 167-168).
[2] Nesse sentido, cita-se obra de RENATO GERALDO MENDES e EGON BOCKMANN MOREIRA: O problema maior está em adotar a ideia de regra e exceção imaginando que há apenas um único pressuposto aplicável para toda a realidade normatizada. Com isso, passamos a crer, por exemplo, que o certo, o comum é licitar, e que não licitar é incomum, é errado. Cria-se, assim, uma ideia de que se valer da exceção é não fazer o que deveria ter sido feito. Gera-se a errada concepção de que se deveria evitar a dispensa e a inexigibilidade. Mas é preciso dizer que não nada disso. Primeiro, porque não há apenas um único pressuposto para definir o cabimento da regra e o da exceção. Segundo, porque a legalidade depende tanto da aplicação da regra quanto da exceção. Ademais, em razão de tal equívoco de concepção, amplia-se demasiadamente o dever de licitar e, por via de consequência, o cabimento da contratação sem licitação é reduzido consideravelmente”. (MENDES, Renato Geraldo; MOREIRA, Egon Bockmann. Inexigibilidade de licitação. Repensando a contratação pública e o dever de licitar).
[3] FREITAS, Rafael Véras de; RIBEIRO, Leonardo Coelho. O prazo como elemento da economia contratual das concessões: as espécies de “prorrogação”. p. 382. In.: MOREIRA, Egon Bockmann (coord.) Tratado do equilíbrio econômico-financeiro: contratos administrativos, concessões, parcerias público-privadas, Taxa Interna de Retorno, prorrogação antecipada e relicitação. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2019. pp. 371-388.