Breves considerações sobre margem de preferência e a regulamentação pelo Decreto nº 11.890/2024
- 9 de fevereiro de 2024
- Posted by: Inove
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Ainda que controverso na doutrina, o uso da licitação para finalidades distintas da seleção da proposta mais vantajosa vem sendo contemplado pela legislação nacional.
Nesse sentido, a Lei nº 14.133/2021 prevê a proteção a mulheres vítimas de violência doméstica e a egressos ou oriundos do sistema prisional (art. 25, § 9º) como uma de suas hipóteses de promoção de políticas públicas por meio das licitações.
Outro tema atrelado ao cumprimento de políticas públicas fortemente tutelado pela Lei nº 14.133/2021 é o desenvolvimento nacional sustentável o qual é previsto entre os princípios das licitações regidas pela referida lei:
Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
O desenvolvimento nacional sustentável está também mencionado entre os objetivos das licitações pelo artigo 11:
Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;
IV – incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
Coerente com essas diretrizes, o artigo 26 da aludida Lei nº 14.133/2021 autoriza a previsão de margem de preferência nos seguintes termos:
Art. 26. No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:
I – bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras;
II – bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento.
§ 1º A margem de preferência de que trata o caput deste artigo:
I – será definida em decisão fundamentada do Poder Executivo federal, no caso do inciso I do caput deste artigo;
II – poderá ser de até 10% (dez por cento) sobre o preço dos bens e serviços que não se enquadrem no disposto nos incisos I ou II do caput deste artigo;
III – poderá ser estendida a bens manufaturados e serviços originários de Estados Partes do Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde que haja reciprocidade com o País prevista em acordo internacional aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente da República.
§ 2º Para os bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo federal, a margem de preferência a que se refere o caput deste artigo poderá ser de até 20% (vinte por cento).
§ 3º (VETADO).
§ 4º (VETADO).
§ 5º A margem de preferência não se aplica aos bens manufaturados nacionais e aos serviços nacionais se a capacidade de produção desses bens ou de prestação desses serviços no País for inferior:
I – à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou
II – aos quantitativos fixados em razão do parcelamento do objeto, quando for o caso.
§ 6º Os editais de licitação para a contratação de bens, serviços e obras poderão, mediante prévia justificativa da autoridade competente, exigir que o contratado promova, em favor de órgão ou entidade integrante da Administração Pública ou daqueles por ela indicados a partir de processo isonômico, medidas de compensação comercial, industrial ou tecnológica ou acesso a condições vantajosas de financiamento, cumulativamente ou não, na forma estabelecida pelo Poder Executivo federal.
§ 7º Nas contratações destinadas à implantação, à manutenção e ao aperfeiçoamento dos sistemas de tecnologia de informação e comunicação considerados estratégicos em ato do Poder Executivo federal, a licitação poderá ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida no País produzidos de acordo com o processo produtivo básico de que trata a Lei nº 10.176, de 11 de janeiro de 2001.)
Conforme é possível extrair do dispositivo, a margem de preferência é um tratamento diferenciado que se estabelece em relação a determinados tipos de bens dentro do processo licitatório com o objetivo de fomentar o desenvolvimento nacional sustentável.
A bem do valor tutelado, a legislação admite que a Administração selecione a proposta que não é a de menor valor. Nesse ponto, aliás, é importante registrar a distinção entre os conceitos de margem de preferência e direito de preferência:
(…) direito de preferência significa que o licitante favorecido tem a oportunidade de apresentar nova proposta e cobrir a proposta mais vantajosa. Por sua vez, na hipótese de margem de preferência o licitante não precisa apresentar nova proposta, ele é declarado vencedor mesmo com a proposta menos vantajosa. Nessas situações, no final das contas e em termos práticos, a Administração admite pagar preço superior em razão da promoção de política pública. [1]
Outra característica que se extrai diretamente da leitura do artigo 26 refere-se ao caráter não obrigatório da aplicação da margem de preferência. Nesse sentido, o artigo 26, caput, deixa clara a discricionaridade ao prever que: “No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência”.
Com o objetivo de regulamentar o artigo 26, foi publicado o Decreto nº 11.890/2024 para dispor sobre a aplicação da margem de preferência no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e instituir a Comissão Interministerial de Contratações Públicas para o Desenvolvimento Sustentável – CICS.
Ainda que se trate de um regulamento editado pelo Executivo federal e a este se destine de forma direta, o próprio normativo autoriza a adoção por Estados, o Distrito Federal, os Municípios e os demais Poderes da União das margens de preferência estabelecidas pelo Poder Executivo federal, previstas no art. 26 da Lei nº 14.133, de 2021.
De acordo com o que se extrai do Decreto, a Comissão criada, CICS, será responsável por estabelecer definições sobre produto manufaturados, serviço nacional, bens reciclados, entre outros conceitos essenciais para a operacionalização das margens de preferência.
O novo regulamento traz definições em seu artigo segundo, das quais se destacam os conceitos de margem de preferência normal e margem de preferência adicional, as quais são, cumulativas.
Trata-se de margem de preferência normal: a) aquela que ocorre entre: 1. produtos manufaturados nacionais e produtos manufaturados estrangeiros; 2. serviços nacionais e serviços estrangeiros, ou 3. bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis e bens não enquadrados como tal; e b) que permite assegurar preferência à contratação de produtos manufaturados nacionais, de serviços nacionais ou de bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis.
Trata-se de margem de preferência adicional: a) aquela que ocorre entre: 1. produtos manufaturados nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País e produtos manufaturados estrangeiros; ou 2. serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País e serviços estrangeiros; e b) que permite assegurar preferência à contratação de produtos manufaturados nacionais ou serviços nacionais.
Adotando a distinção entre margem de preferência normal e adicional, o artigo 3º do Decreto disciplina os limites percentuais para aplicação do benefício:
Art. 3º Nos processos de licitação realizados no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os produtos manufaturados nacionais e os serviços nacionais que atendam aos regulamentos técnicos pertinentes e às normas técnicas brasileiras poderão ser objeto de margem de preferência normal, na forma prevista em resolução da CICS, de até dez por cento sobre o preço dos produtos manufaturados estrangeiros ou dos serviços estrangeiros.
§ 1º Os produtos manufaturados nacionais e os serviços nacionais resultantes de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no País poderão ter margem de preferência adicional de até dez por cento, que, acumulada à margem de preferência normal, não poderá ultrapassar vinte por cento.
Na mesma linha do que estabelecido pelo artigo, o dispositivo autoriza a concessão de margem de preferência a produtos manufaturados e serviços que além de nacionais sejam resultantes de inovação tecnológica realizados no País.
Gabriela Lira Borges é mestre em Planejamento e Governança Publica pela UTFPR (2020). Especialista em Direito Tributário pela Uniderp/Anhaguera e em Direito Constitucional pela Unisul, advogada e consultora jurídica especializada em contratações públicas e de entidades paraestatais. Coautora do livro Horizontes e Perspectivas da Lei nº 14.133/2021 (Lumen Juris, 2022) e autora de diversos artigos jurídicos sobre licitações e contratos na Administração Pública e em entidades do Sistema S e sobre regime jurídico de pessoal da Administração.
[1] NIEBUHR, Joel de Menezes. Licitações Públicas e Contrato Administrativo. 5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 416.