Considerações sobre a designação de agentes públicos para funções previstas na Lei nº 14.133/21
- 22 de abril de 2022
- Posted by: Inove
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Resumo:
Este artigo teve por objetivos comparar as regras de designação de agentes públicos para o desempenho das funções previstas na Lei nº 8.666/93 e na Lei nº 10.520/02 com as da Lei nº 14.133/21, delimitar conceitos relevantes para a compreensão das novas regras e demonstrar a importância da capacitação dos agentes públicos e das escolas de governo e escolas de contas no contexto da Lei nº 14.133/21. Para isso, foram elencados os dispositivos legais que tratam das funções inerentes a licitações e contratos, exemplos de sua interpretação e aplicação por diferentes entes públicos e concepções doutrinárias que contribuem para sua compreensão. Foram também apresentados aspectos legais e teóricos acerca da capacitação de agentes públicos e da atuação de escolas de governo e escolas de contas, evidenciando sua importância para a plena aplicação da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
1. Introdução
A Lei nº 14.133/21 traz inovações para a matéria de licitações e contratos administrativos, em razão de uniformizar regras procedimentais que até então eram editadas individualmente por cada órgão e entidade da administração pública segundo suas necessidades e peculiaridades próprias.
Um exemplo dessa uniformização é o rol de requisitos a serem atendidos pelos agentes públicos que serão designados pela Administração para desempenhar as funções previstas na nova Lei.
O objetivo deste artigo foi traçar um panorama de como a escolha desses agentes se dá sob a regência da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 10.520/02 e do que muda com a Lei nº 14.133/21, delimitar alguns conceitos importantes para a compreensão das novas regras e demonstrar a importância da capacitação dos servidores e empregados públicos e das escolas de governo e escolas de contas nesse novo cenário.
2. Contexto atual moldado pela Lei nº 8.666/93 e Lei nº 10.520/02
A realização dos atos administrativos necessários às contratações públicas envolve sempre assumir algum grau de responsabilidade, com diferentes possibilidades de resultados e desdobramentos tanto positivos quanto negativos para a Administração, as empresas licitantes e contratadas e a população direta ou indiretamente atendida pelo objeto licitado.
A perspectiva de responsabilizar-se e de ser responsabilizado por tais resultados e desdobramentos pode desestimular o interesse do agente público (seja ele servidor efetivo, empregado público ou ocupante de cargo de livre nomeação) de participar de qualquer das fases do processo administrativo de contratação de terceiros, que, simplificadamente, consistem na fase preparatória da licitação, na fase de seleção do fornecedor e na fase de execução contratual.
O art. 116, inciso IV, do regime jurídico dos servidores públicos civis federais, cujo teor é, em geral, reproduzido pelos regimes estaduais e municipais, entretanto, reforça a tese da impossibilidade da recusa do agente público em participar do processo quando designado pela autoridade competente. Estabelece o dispositivo que é dever do servidor “cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais”.
A Lei nº 8.666/93 prevê expressamente as funções de comissão de licitação, leiloeiro, responsável pelo convite, comissão julgadora, fiscal do contrato e servidores e comissões responsáveis pelo recebimento do objeto (art. 6º, inciso XVI, art. 38, incisos III e V, art. 67 e art. 73).
Quanto aos requisitos para a designação dos agentes que exercerão essas funções, a Lei nº 8.666/93 estabelece:
- que a comissão de licitação seja composta por, no mínimo, três membros, sendo pelo menos dois deles servidores qualificados pertencentes aos quadros permanentes dos órgãos da Administração responsáveis pela licitação (art. 51, caput);
- que a comissão para julgamento dos pedidos de inscrição em registro cadastral, sua alteração ou cancelamento, seja integrada por profissionais legalmente habilitados no caso de obras, serviços ou aquisição de equipamentos (art. 51, § 2º);
- no caso de concurso, que o julgamento seja feito por comissão especial integrada por pessoas de reputação ilibada e reconhecido conhecimento da matéria em exame, servidores públicos ou não (art. 51, § 5º).
Por sua vez, a Lei nº 10.520/02 determi-na que sejam designados, dentre os servidores do órgão ou entidade promotora da licitação, o pregoeiro e respectiva equipe de apoio, devendo esta ser integrada em sua maioria por servidores ocupantes de cargo efetivo ou emprego da Administração, preferencialmente pertencentes ao quadro permanente do órgão ou entidade promotora do evento (art. 3º, inciso IV e § 1º).
Ou seja, esses dois diplomas legais permitem considerável margem de discricionariedade ao gestor público para a escolha dos servidores a serem designados para desempenhar as citadas funções. Essa margem viabiliza a aplicação das leis nos mais diversos contextos, em especial nos órgãos e entidades com quadros reduzidos de pessoal ou cujas atribuições e exigências para provimento dos cargos têm pouca ou nenhuma relação com as atividades necessárias ao processamento de licitações e gestão contratual.
Por outro lado, o agente público com qualificação profissional e escolaridade incompatível ou insuficiente para o desempenho da função e impossibilitado de recusar a designação, por não ser esta manifestamente ilegal, não encontra nas leis gerais de licitações e contratos requisitos que possam fundamentar seu pedido de recusa lícita ou de que a autoridade designe outro agente com perfil mais adequado à função.
Nesse contexto, os órgãos e entidades públicos passaram a incluir em seus regulamentos e manuais sobre licitações e contratos a previsão de condutas a serem adotadas tanto por servidores quanto por gestores que se deparassem com dificuldades dessa natureza, buscando garantir a observância a critérios técnicos e impessoais nas designações e, consequentemente, melhor qualidade na condução dos respectivos processos administrativos.
Por exemplo, a Instrução Normativa nº 5/2017 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão exige que, na indicação de gestor e de fiscal de contrato, sejam considerados a compatibilidade com as atribuições do cargo, a complexidade da fiscalização, o quantitativo de contratos por servidor e a sua capacidade para o desempenho das atividades (art. 41, § 2º).
O art. 43 dessa Instrução prevê, ainda, que o servidor exponha ao superior hierárquico as deficiências e limitações técnicas que possam impedir o diligente cumprimento do exercício das atribuições de gestor ou fiscal de contrato, diante das quais a autoridade competente deve optar entre providenciar a necessária qualificação do servidor ou designar outro servidor com a qualificação requerida.
No mesmo sentido, o Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos do Superior Tribunal de Justiça orienta que: gestores e fiscais de contratos sejam designados preferencialmente entre os servidores que compõem a unidade demandante e possuem conhecimento do objeto a ser contratado; os servidores não podem recusar-se a cumprir tarefas que sejam compatíveis com o nível de complexidade das atribuições do seu cargo; e o gestor deve expor ao superior hierárquico a necessidade de capacitação para o diligente cumprimento do exercício de suas atribuições (BRASIL, 2019, p. 5).
No contexto da administração pública municipal, o Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos editado pela Prefeitura da Estância Turística de Olímpia, estado de São Paulo, orienta que o gestor ou fiscal de contrato seja dotado de boa reputação ético-profissional, preferencialmente que não esteja respondendo a processo de sindicância ou administrativo disciplinar, não tenha sido punido por atos lesivos ao patrimônio público ou responsabilizado por irregularidades em âmbito administrativo e não tenha sido condenado judicialmente por crimes contra a Administração Pública (OLÍMPIA, 2016).
Além desses requisitos concernentes ao histórico de conduta do agente público, o manual orienta que o gestor ou fiscal de contrato possua conhecimentos específicos do objeto a ser fiscalizado. Embora não especifique a forma de comprovação desses conhecimentos, a orientação reduz a possibilidade de designação de agente que não tenha, alternativamente, formação acadêmica, experiência de trabalho ou atribuições do cargo minimamente condizentes com o objeto do contrato.
É possível concluir que, na designação de agentes públicos para o desempenho de funções inerentes a licitações e contratos, devem ser observados pelo gestor público os requisitos e orientações previstos nas normas internas do respectivo órgão ou entidade pública, tais como a complexidade das atividades, a quantidade de contratos, o vínculo do agente com a unidade demandante e sua boa conduta e histórico funcional.
Além disso, diferentes condutas podem ser adotadas por um agente público diante da possibilidade de ser designado para função para a qual não esteja apto, a depender do teor das normas internas do órgão ou entidade à qual ele pertence: é possível argumentar que as atribuições da função são incompatíveis com as atribuições de seu cargo; é possível alegar que não possui conhecimento sobre o objeto da licitação e/ou do contrato; é possível solicitar que a Administração providencie sua capacitação, necessária ao desempenho da função etc.
Embora a Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 10.520/02 não impeçam expressamente, por exemplo, a designação para funções afetas a licitações e contratos de servidores ocupantes de cargos de livre nomeação e a concentração de funções de seleção de fornecedores e fiscalização contratual em um mesmo servidor, o que em tese pode prejudicar, em diferentes níveis, a confiabilidade dos procedimentos, essas normas gerais propiciaram que os órgãos e entidades da administração pública organizassem seus setores de licitações e contratos de acordo com a realidade local, especialmente em função dos recursos humanos disponíveis.
Para órgãos com quadros de pessoal reduzidos, como fundações e câmaras municipais de cidades pequenas, seria inviável que a norma interna exigisse que membros de comissão de licitações, pregoeiros e fiscais de contratos fossem todos servidores efetivos com formação acadêmica em Direito ou Administração Pública, por exemplo. De igual modo, não seria razoável que regulamentos de Prefeituras de cidades com milhões de habitantes e robusta estrutura administrativa não exigissem que os agentes designados tivessem qualificação técnica compatível com as atribuições da função de membro de comissão de licitação ou gestor de contrato.
O desafio apresentado pela nova norma geral, a Lei nº 14.133/21, está exatamente na uniformização dos critérios para a designação de agentes públicos que atuarão em processos licitatórios e na gestão de contratos, delineando um novo cenário que, assim como o atual, possui aspectos positivos, negativos e incertezas a serem estudados e ponderados no âmbito da administração pública.
3. Delimitando o conceito de agente público do art. 7º da Lei nº 14.133/21
Antes de adentrar no tema dos critérios da Lei nº 14/133/21 para a designação de pessoal para atuar em processos administrativos de licitações e contratos, é importante recordar o conceito de agente público positivado no art. 2º da Lei nº 8.429/92, com nova redação dada pela Lei nº 14.230/21 (grifos nossos):
Art. 2º Para os efeitos desta Lei, consideram-se agente público o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referidas no art. 1º desta Lei.
O art. 1º da Lei nº 8.429/92 (com a redação dada pela Lei nº 14.230/21), mencionado no art. 2º, não faz referência a quaisquer entidades em seu caput, mas, sim, no § 5º ao § 7º, quais sejam: os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a administração direta e indireta, no âmbito da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal; entidades privadas que recebam subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de entes públicos ou governamentais; e entidades privadas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra no seu patrimônio ou receita atual.
Dentro desse amplo conceito, uma das classificações propostas pela doutrina jurídica distingue os agentes públicos entre agentes políticos, servidores públicos, agentes particulares colaboradores e agentes de fato (CARVALHO FILHO, 2015).
O Capítulo IV do Título I da Lei nº 14.133/21 contém as regras gerais concernentes aos agentes públicos responsáveis pelo de-sempenho das funções essenciais à execução dessa Lei, abrangendo principalmente critérios de escolha e de composição de equipes, vedações e garantias.
Ao dispor que cabe à autoridade máxima do órgão ou da entidade, ou a quem as normas de organização administrativa indicarem, designar agentes públicos que “sejam, preferencialmente, servidor efetivo ou empregado público dos quadros permanentes da Administração Pública”, o art. 7º, caput e inciso I, da Lei nº 14.133/21 se refere:
- aos servidores investidos em cargos públicos mediante aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, nos moldes do inciso I do art. 37 da Constituição Federal, aos quais deve ser dada preferência, classificados por Mello (2002) como servidores públicos e, mais especificamente, como servidores titulares de cargos públicos;
- aos servidores investidos em empregos públicos mediante aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, nos moldes do inciso I do art. 37 da Constituição Federal, aos quais deve ser dada preferência, classificados por Mello (2002) como servidores públicos subdivididos entre servidores empregados das pessoas jurídicas de direito público e servidores empregados das fundações de direito privado instituídas pelo Poder Público;
- aos servidores nomeados para cargos em comissão declarados em Lei de livre nomeação e exoneração, nos moldes do inciso I, in fine, do art. 37 da Constituição Federal, classificados por Mello (2002) como servidores públicos e, mais especificamente, como servidores titulares de cargos públicos;
- aos agentes contratados por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público nos moldes do inciso IX do art. 37 da Constituição Federal, classificados por Mello (2002) como servidores públicos e, mais especificamente, como servidores empregados das pessoas jurídicas de direito público.
Especificamente quanto ao servidor ocupante de cargo de livre nomeação, não há vedação legal de que seja designado para a função de fiscal de contrato, por exemplo. Entretanto, ele deverá desempenhar essa função paralelamente e concomitantemente ao desempenho das atribuições de direção, chefia e/ou assessoramento do cargo para o qual foi nomeado.
Isso porque, caso após a designação como fiscal de contrato o servidor passe a exercer somente as atribuições previstas no art. 117 da Lei nº 14.133/21, que não possuem natureza de direção, chefia ou assessoramento, estará descaracterizada a hipótese do inciso V do art. 37 da Constituição Federal, que fundamentou originalmente sua nomeação sem prévia aprovação em concurso público.
Ainda quanto à natureza do vínculo entre o agente público e a Administração, a Lei nº 14.133/21 exige que seja designado servidor efetivo ou empregado público do quadro permanente para as funções de: agente de contratação (art. 6º, inciso LX, e art. 8º, caput); membros da comissão de contratação responsável pela condução de diálogo competitivo (art. 32, § 2º); membros da banca avaliadora de quesitos de natureza qualitativa no julgamento por melhor técnica ou por técnica e preço (art. 37, inciso II e § 1º, inciso I); membros da comissão responsável pela condução de processo de responsabilização (art. 158).
4. A uniformização de critérios promovida pela Lei nº 14.133/21
Inicialmente, o art. 7º da Lei nº 14.133/21 determina que a autoridade máxima do órgão ou da entidade pública (ou quem as normas de organização administrativa indicarem) promova gestão por competências de seus agentes públicos.
No setor privado é comum a aplicação de modelos de gestão de competências, visando planejar, selecionar e desenvolver as competências necessárias ao respectivo negócio (BRANDÃO; GUIMARÃES, 2001). A partir da identificação de lacunas (gaps) de competências internas da empresa em comparação com as competências necessárias à consecução de seus objetivos, tomam-se medidas para minimizar essas lacunas, por exemplo, através de recrutamento e seleção, treinamento e gestão de desempenho de pessoal (BRANDÃO; GUIMA-RÃES, 2001).
Trazendo esse conceito para o setor público, em especial para as funções essenciais à execução da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, a gestão de competências deve tomar como referência os princípios e dispositivos legais, identificar as características dos recursos humanos e das práticas existentes no órgão ou entidade pública e direcionar os critérios de seleção, treinamento, planos de carreira e rotinas de trabalho, por exemplo, para a captação e o desenvolvimento das competências necessárias para atingir seus objetivos e atender as exigências legais.
Por exemplo, no âmbito federal, o Decreto nº 9.991/2019 exige a elaboração anual de um Plano de Desenvolvimento de Pessoas, precedida, preferencialmente, por diagnóstico de competências, definido como “a identificação do conjunto de conhecimentos, habilidades e condutas necessários ao exercício do cargo ou da função” (art. 3º, § 3º).
Ou seja, pretende a Lei nº 14.133/21 que, antes de designar agentes públicos para as funções que lhe são essenciais, a Administração promova a gestão por competências, que pode resultar tanto em singelas quanto em profundas reorganizações de setores e equipes, conforme a gravidade das lacunas identificadas entre as novas exigências legais e as competências existentes no quadro de pessoal.
Superada essa etapa e observada a preferência a servidor efetivo ou empregado público do quadro permanente, o art. 7º veda que o agente público designado seja cônjuge ou companheiro de licitantes ou contratados habituais da Administração ou tenha com eles vínculo de parentesco, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, ou de natureza técnica, comercial, econômica, financeira, trabalhista e civil.
Esse critério excludente tem como fundamento o princípio da impessoalidade, por força do qual a Administração deve tratar os administrados sem perseguições ou favorecimentos, como consectário do princípio da igualdade de todos perante a Lei (MEIRELLES, 1999). Assim, a nova Lei busca garantir que não desempenhem funções nas contratações públicas agentes que tenham interesse de qualquer natureza nos resultados do certame ou da execução contratual, que possa levar ao tratamento diferenciado a determinado fornecedor, em detrimento dos demais.
Outro requisito estabelecido pelo art. 7º consiste em que os agentes públicos designados tenham atribuições relacionadas a licitações e contratos ou possuam formação compatível.
É possível tanto que a descrição das atribuições do cargo do agente público seja detalhada o suficiente para que se possa considerá-las relacionadas à função prevista na nova Lei, quanto que a descrição seja demasiadamente sucinta, exigindo que a Administração fundamente a interpretação das atribuições realizada, ou seja, motive sua decisão sobre o atendimento a esse requisito em cada caso concreto, ou estabeleça em regulamento critérios de interpretação para todos os casos de descrição insuficiente de atribuições.
Quanto à formação compatível, não haveria dificuldade, por exemplo, em escolher um engenheiro ou um farmacêutico para a função de fiscal de um contrato para a construção de uma escola ou para o fornecimento de medicamentos, respectivamente. Mas outras funções essenciais à Lei nº 14.133/21 e outras forma-ções acadêmicas frequentemente exigirão esforço interpretativo, decisões motivadas e até mesmo a regulamentação de critérios de aferição da compatibilidade entre o conhecimento formal e as atividades a serem atribuídas ao agente.
O § 1º do art. 7º, por sua vez, estabelece que a Administração observe o princípio da segregação de funções, vedando a designação do mesmo agente público para atuação simultânea em funções mais suscetíveis a riscos, de modo a reduzir a possibilidade de ocultação de erros e de ocorrência de fraudes na respectiva contratação.
Em observância ao princípio da segregação de funções, o Manual de Gestão e Fiscalização de Contratos do Superior Tribunal de Justiça, por exemplo, orienta que: os servidores das áreas de licitações, compras e contratos não sejam designados como fiscais e gestores, salvo quando o contrato for executado e controlado exclusivamente nessas unidades; quando não houver designação de fiscais, o gestor de contrato realize as atribuições destes se desnecessária a segregação das funções, caso contrário, seja designado outro servidor como fiscal; nas contratações de serviços, exista, na medida do possível, a segregação das atividades de recebimento (BRASIL, 2019).
Em seu turno, a Instrução Normativa nº 5/2017 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão determina que: para um mesmo objeto, os serviços de execução, de subsídios ou assistência à fiscalização ou supervisão sejam realizados por prestadores diferentes; o recebimento provisório seja realizado pelos fiscais ou equipe de fiscalização e o recebimento definitivo pelo gestor do contrato; cláusula específica veda a contratação de uma mesma empresa para dois ou mais serviços licitados, quando, por sua natureza, esses serviços exigirem a segregação entre as funções de execução e de assistência à fiscalização, por exemplo.
Além das funções essenciais à execução da nova Lei, tais como agente de contratação, equipe de apoio, comissão de contratação, pregoeiro, leiloeiro, gestor de contrato e fiscal de contrato, os requisitos do art. 7º, por força de seu § 2º, também se aplicam aos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno da Administração.
Sendo assim, esses órgãos devem ser compostos preferencialmente por servidores efetivos ou empregados públicos, com formação compatível com as respectivas atribuições e sem vínculo com licitantes ou contratados habituais da Administração e ter suas funções segregadas em relação às demais envolvidas nos processos de contratação.
Claro exemplo dessa segregação está previsto no art. 169, que insere as funções de assessoramento jurídico e de controle interno na segunda linha de defesa, enquanto as demais funções, exercidas por servidores e empregados públicos, agentes de licitação e autoridades, se enquadram da primeira linha de defesa.
O mesmo dispositivo segrega, também, as funções das unidades de controle interno do próprio órgão ou entidade das funções do órgão central de controle interno da Administração.
Essa divisão pode ser ilustrada pelo exemplo do Estado de São Paulo que, nos termos do art. 48 do Decreto nº 57.500/2011, tem seu sistema de controle interno exercido pela Casa Civil, através da Corregedoria Geral da Administração, como órgão central, e pelas Secretarias da Fazenda (em especial por meio do Departamento de Controle e Avaliação), de Planejamento e Desenvolvimento Regional (em especial pela Coordenadoria de Planejamento e Avaliação e pela Coordenadoria de Orçamento), de gestão pública e Procuradoria Geral do Estado como unidades de controle.
Tomando como modelo a descrição das três linhas de defesa do Referencial de combate à fraude e corrupção do Tribunal de Contas da União, na segunda linha de defesa, as unidades de controle interno monitorariam os riscos de desconformidade com leis e regulamentos e os riscos financeiros, por exemplo, enquanto, na terceira linha de defesa, o órgão central de controle interno forneceria à autoridade máxima do órgão ou da entidade (ou a quem as normas de organização administrativa indicassem) a avaliação objetiva e independente quanto à eficácia dos processos de gerenciamento de risco, controle e governança (BRASIL, 2018).
5. A capacitação como alternativa de atendimento aos requisitos da Lei 14.133/21
Enquanto a Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 10.520/02 conferem a cada órgão e entidade pública margem de discricionariedade para es-tabelecer critérios gerais e específicos próprios para a escolha de agentes públicos que irão desempenhar as funções nelas previstas, a Lei nº 14.133/21 estabelece regras gerais a serem observadas por toda a Administração Pública, com critérios que restringem essa discricionariedade, em maior grau nos contextos de reduzida estrutura administrativa.
Exemplos dessa restrição seriam: o diagnóstico de ausência ou insuficiência das competências necessárias ao desempenho das funções essenciais da nova Lei nos recursos humanos disponíveis; a ausência ou insuficiência de cargos no quadro de pessoal com atribuições relacionadas a licitações e contratos; a ausência de servidores ou empregados com formação compatível com atribuições previstas na nova Lei; e a quantidade insuficiente de pessoal do quadro permanente para o adequado atendimento ao princípio da segregação de funções.
Alguns problemas dessa natureza somente podem ser solucionados com a admissão de novos servidores ou empregados, com a reformulação do quadro de pessoal, com a reorganização de departamentos e setores (para a criação de unidades e órgão central de controle interno, por exemplo), entre outras medidas que, em muitos casos, dependem de alterações na legislação local e de atenção aos preceitos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Em outros casos, entretanto, esses problemas têm como solução a parte final do inciso II do art. 7º da Lei nº 14.133/21, qual seja: a qualificação do agente público atestada por certificação profissional emitida por escola de governo criada e mantida pelo poder público.
Tanto o preenchimento de lacunas de competências, quanto o atendimento ao inciso II do art. 7º da nova Lei podem ser alcançados através da capacitação de agentes que, a princípio, não poderiam ser designados para atuar em licitações e acompanhamento de execuções contratuais por não possuírem as habilidades ou o conhecimento necessários à boa execução das atividades que tais procedimentos demandam.
Além disso, ao capacitar os servidores e empregados, a Administração aumenta o contingente de pessoal que pode atuar em licitações e contratos, o que facilita a segregação de funções entre diferentes agentes ou setores dentro de sua estrutura organizacional e amplia a margem de discricionariedade do gestor quanto à escolha dos servidores ou empregados a serem designados em cada processo.
De acordo com os artigos 39 a 41 da Lei nº 9.394/96, a educação profissional integra-se aos diferentes níveis e modalidades de educação, abrangendo cursos de formação inicial e continuada ou qualificação profissional, de nível médio, de graduação e de pós-graduação, pode ser desenvolvida no ambiente de trabalho e pode ser objeto de avaliação, reconhecimento e certificação para prosseguimento ou conclusão de estudos.
Por sua vez, o Decreto nº 5.154/04, que regulamenta os artigos 39 a 41 da Lei nº 9.394/96, dispõe que (grifos nossos):
Art. 3º Os cursos e programas de formação inicial e continuada de trabalhadores, referidos no inciso I do art. 1o, incluídos a capacitação, o aperfeiçoamento, a especialização e a atualização, em todos os níveis de escolaridade, poderão ser ofertados segundo itinerários formativos, objetivando o desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva e social.
Nesse contexto, é possível interpretar que a capacitação se enquadra na formação inicial e continuada ou qualificação profissional prevista no inciso I do § 2º do art. 39 da Lei nº 9.394/96, pode ser formulada em qualquer nível de escolaridade, a depender do nível de escolaridade dos profissionais aos quais se destina, e pode resultar em certificação dos profissionais, sem, no entanto, alterar seu grau de formação acadêmica.
A educação profissional que tem o condão de alterar o grau de formação acadêmica seria aquela oferecida através de cursos de nível médio (art. 39, § 2º, inciso II, da Lei nº 9.394/96), graduação (art. 39, § 2º, inciso III, da Lei nº 9.394/96), pós-graduação e especialização (art. 39, § 2º, inciso III, da Lei nº 9.394/96 e art. 3º do Decreto nº 5.154/04). Estas modalidades de educação profissional podem propiciar que o agente público adquira a formação compatível de que trata o inciso II do art. 7º da Lei nº 14.133/21.
Alternativamente a essa formação é que a Lei nº 14.133/21 prevê a qualificação atestada por certificação profissional emitida por escola de governo (art. 7º, inciso II, in fine), mencionando expressamente a capacitação em seu art. 18, § 1º, inciso X, art. 171, § 3º, inciso I, e art. 173.
Em outras palavras, o servidor ou empregado público que obtiver formação profissional promovida por escola de governo em grau de especialização na área de compras governamentais, por exemplo, se enquadraria tanto na hipótese de formação compatível quanto na hipótese de qualificação atestada por certificação profissional, previstas no inciso II do art. 7º da nova Lei. Já aquele que obtiver certificação emitida por escola de governo em razão de conclusão de curso presencial de capacitação profissional de curta duração, por exemplo, se enquadraria somente na segunda hipótese.
No contexto da administração pública municipal, o Decreto nº 4.146/19 da Prefeitura do Município de Hortolândia [1], estado de São Paulo, que institui a Escola de gestão pública de Hortolândia, faz essa distinção entre cursos de capacitação profissional e cursos de formação. Isso porque o inciso VII de seu art. 2º prevê como atividades de capacitação, na alínea “a”, os cursos presenciais ou a distância de capacitação profissional de curta, média e longa duração e, nas alíneas “b” e “c”, os cursos de educação formal (ensino fundamental e médio, educação de jovens e adultos, formação técnica e educação superior) e os cursos em diversas modalidades de pós-graduação.
6. Escolas de governo, escolas de contas e o alcance do art. 173 da Lei nº 14.133/21
O art. 39, § 2º, da Constituição Federal estabelece que a União, os Estados e o Distrito Federal mantenham escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos.
Aires et al. (2014) traçaram um panorama das escolas de governo do Brasil, descrevendo-as e analisando-as quanto à variedade e tipologia dos cursos oferecidos, quanto às formas de realização dos cursos (presencial, a distância e/ou semipresencial), quanto ao grau de detalhamento e acessibilidade de informações das instituições e da disponibilidade de ferramentas e recursos interativos e quanto à existência e pertinência de ações e parcerias realizadas em prol dos servidores internos e/ou do seu público-alvo. O quadro a seguir sintetiza a relação de escolas de governo levantadas e analisadas pelos autores:
Quadro 1 – Escolas de governo no Brasil
Embora não previstas expressamente no texto constitucional, o país conta, também, com escolas de governo instituídas em âmbito municipal, como a do Município de Hortolândia, citada na seção anterior deste artigo, bem como com escolas instituídas pelos Poderes Judiciários e Legislativos e pelos Tribunais de Contas.
Estas últimas merecem especial atenção, em razão de serem endereçadas em específico pelo art. 173 da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. As escolas de contas podem ser definidas como:
centros de treinamento para os membros dos TCs, para os jurisdicionados e inclusive as entidades públicas envolvidas com esses órgãos. Realizam ainda estudos e desenvolvem atividades de informação e orientação dos cidadãos sobre como participar na fiscalização das contas públicas. Mesmo não fazendo parte da realidade de todos os tribunais do país, já que são iniciativas recentes, também vinculadas à LRF, as escolas de contas estão se difundindo na medida em que essa Lei alterou diversos mecanismos contábeis e os fiscalizados passaram a ter expectativa de que os TCs atuem de forma mais educativa do que punitiva (LOUREIRO; TEIXEIRA; MORAES, 2009, p. 755).
Em primeiro lugar, o art. 173 da Lei nº 14.133/21 exige que as escolas de contas promovam eventos de capacitação, incluídos cursos presenciais e a distância, redes de aprendizagem, seminários e congressos sobre contratações públicas, sem, no entanto, exigir tipologia específica para os cursos a serem oferecidos.
No âmbito da administração pública federal, o Decreto nº 5.707/06 [2] considerava eventos de capacitação os cursos presenciais e a distância, a aprendizagem em serviço, os grupos formais de estudos, os intercâmbios, estágios, seminários e congressos (art. 2º, inciso III).
De igual modo, o Decreto nº 4.146/19 da Prefeitura do Município de Hortolândia, no estado de São Paulo, prevê como atividades de capacitação: cursos de capacitação profissional, cursos de educação formal, cursos de pós-graduação, intercâmbios ou estágios profissionais, acadêmicos ou de pesquisa, visitas técnicas, grupos formais de estudos e eventos de curta duração, tais como congressos, encontros, conferências, seminários, fóruns, mesas-redondas, palestras, oficinas ou similares (inciso VII do art. 2º).
Ou seja, o termo eventos de capacitação escolhido pelo legislador garante ampla margem de discricionariedade às escolas de contas para escolher as modalidades de capacitação que melhor se compatibilizem com seus recursos humanos, materiais e financeiros e com suas rotinas e expertise de atuação pedagógica.
Além disso, o art. 173 da Lei nº 14.133/21 delimita como público-alvo dos eventos os servidores efetivos e empregados públicos designados para o desempenho das funções essenciais à execução da Lei.
Nada impede, é claro, que a escola de contas decida disponibilizar eventos de capacitação sobre contratações públicas a servidores ocupantes de cargos em comissão de livre nomeação e exoneração e a servidores efetivos e empregados públicos ainda sem perspectiva de serem designados para as funções previstas na nova Lei, porém, o art. 173, em tese, garante à escola a opção de restringir a participação ao público-alvo por ele delimitado em seu texto.
Dos eventos promovidos pelas escolas de contas, somente os cursos de capacitação profissional, de educação formal e de pós-graduação se enquadram, a princípio, nos conceitos de certificação profissional e de formação compatível, exigidas pelo inciso II do art. 7º da Lei nº 14.133/21.7
Considerações finais
A realidade das licitações e contratos administrativos, em especial quanto aos servidores e empregados públicos que desempenham as funções essenciais a esses procedimentos, passará por importantes mudanças em razão da entrada em vigor da Lei nº 14.133/21, em especial em contextos de reduzida estrutura de pessoal.
Passaremos de um cenário no qual a Administração conta com ampla discricionariedade para designar seus representantes para um cenário no qual requisitos objetivos condicionam as designações, com foco principal na gestão de competências e na escolha de servidores e empregados públicos em condições de apresentar um desempenho satisfatório daquelas funções.
O presente artigo buscou apresentar a capacitação de pessoal como estratégia fundamental para corrigir e suprir lacunas de competências, propiciando o atendimento às exigências da nova Lei, bem como apresentar os principais conceitos inseridos nessas exigências, para uma melhor compreensão do texto legal e das responsabilidades dos atores envolvidos, em especial gestores públicos, escolas de governo e escolas de contas.
Com isso, espera-se oferecer contribuição aos estudos e discussões necessários à adequação da administração pública à nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
Maira Coutinho Ferreira Giroto é Doutora em Linguística e Língua Portuguesa. Especialista em Direito Público e Direito Administrativo. Bacharel em Direito. Agente de Fiscalização do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.
Referências
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Notas
[1] Publicado em 13 de março de 2019 no Diário Oficial Eletrônico do Município de Hortolândia.
[2] Revogado pelo Decreto nº 9.991/19, que não apresenta definição para o termo eventos de capacitação.