Da prescrição da pretensão punitiva na sistemática da Lei 14.133/2021
- 2 de dezembro de 2022
- Posted by: Inove
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DECISÃO DO PROCESSO SANCIONADOR
Muitos são os eventuais deslindes do processo sancionador ante infrações em licitações e contratos na sistemática da lei 14.133/2021. Poderão envolver decisões absolutórias quando se comprovar a inexistência de autoria ou de materialidade, e quando forem insuficientes as provas a respeito desses elementos essenciais da condenação. Por outro lado, as decisões poderão ter cunho condenatório quando demonstrados os pressupostos fáticos e jurídicos a configurar tipo infracional, bem como a ausência de excludentes, como o cumprimento de dever legal.
A decisão alternativamente poderá admitir a prescrição da pretensão punitiva, que recebe disciplina expressa na lei 14.133/2021.
DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA NA SISTEMÁTICA DA LEI 14.133/2021
A Lei federal nº 8.666/93 – que era a antiga lei geral de licitação – não previa na sua disciplina legal das sanções administrativas, a prescrição das penalidades a que está sujeito o contratado, de forma que se aplicava a Lei nº 9.873/99 (Lei do processo administrativo federal), observada a limitação espacial desse diploma legislativo, cuja incidência se reserva à Administração Pública federal e aos entes federativos que, expressamente a tenha adotado.
Neste diapasão, no âmbito da Administração Pública Federal, a Lei 9.873/99 (que estabelece prazo de prescrição para o exercício de ação punitiva pela Administração Pública Federal, direta e indireta, e dá outras providências), traz a seguinte disciplina:
”Art. 1o – Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado”
Acerca da aplicabilidade da lei 9.873/99 aos contratos administrativos, entende Joel de Menezes NIEBUHR:
”De todo modo, entende-se que, conquanto o inciso IV do Art. 87 não tenha previsto prazo máximo para a sanção de declaração de inidoneidade, ela não pode ultrapassar cinco anos. Isso porque a pretensão punitiva da Administração, em consonância com a Lei nº 9.873/1999, como ocorre com a sanção de declaração de inidoneidade, decai em cinco anos. Então, ainda que não desapareçam os motivos determinantes da punição, ainda que a pessoa penalizada não repare os prejuízos causados e ainda que a Lei nº 8.666/1993 não o tenha dito expressamente, a sanção de declaração de inidoneidade extingue-se em cinco anos”
Preliminarmente, cabe alertar que no que tange a Estados e Municípios que não seguem a Lei nº 9.873/99, a prescrição da pretensão punitiva deve ser regida pelas regras do Decreto nº 20.910/32.
A Lei 14.133/2021 preceitua em seu artigo 158, §4º:
“Artigo 158 — A aplicação das sanções previstas nos incisos III e IV do caput do artigo 156 desta Lei requererá a instauração de processo de responsabilização, a ser conduzido por comissão composta de 2 (dois) ou mais servidores estáveis, que avaliará fatos e circunstâncias conhecidos e intimará o licitante ou o contratado para, no prazo de 15 (quinze) dias úteis, contado da data de intimação, apresentar defesa escrita e especificar as provas que pretenda produzir. (…)
§ 4º A prescrição ocorrerá em 5 (cinco) anos, contados da ciência da infração pela Administração, e será:
I – interrompida pela instauração do processo de responsabilização a que se refere o caput deste artigo;
II – suspensa pela celebração de acordo de leniência previsto na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013;
III – suspensa por decisão judicial que inviabilize a conclusão da apuração administrativa”.
O prazo quinquenal prescricional indica que a Administração Pública deve iniciar a apuração da infração dentro de cinco anos, a partir do momento que teve conhecimento dos fatos.
No que tange ao termo inicial prescricional (a ciência pela Administração) entende a boa doutrina que começa a fluir o prazo prescricional a partir do momento em que a Administração Pública tem efetiva condição de cognição sobre o fato que enseje apuração de responsabilidade.
O direito de punir da Administração pública nasce com a violação das normas que deveriam ser respeitadas pelo contratado. Por sua vez a prescrição começa a correr do conhecimento da infração pelo titular do poder sancionatório.
Ou seja, a Administração Pública que, diante de uma ação ou omissão ilícita de seus contratados, não pode se colocar em posição de desconhecimento deliberado do ‘fato’ para administrar o termo inicial prescricional. Daí porque, tendo efetivas condições de conhecimento sobre os fatos infracionais, começa a fluir o prazo previsto no artigo 158, §4º, da Lei 14.133/2021.
Numa leitura superficial e advinda de uma exegese meramente gramatical, poder-se-ia dizer que a prescrição tratada no §4º somente se aplicaria às penalidades de impedimento e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública (artigo 156, III e IV, mencionados no caput do artigo 158).
Não é isso. O silêncio do caput do artigo 158, quanto à multa e advertência (artigo 156, incisos I e II), a toda evidencia, não poderia legitimar o argumento de que se pretendeu a imprescritibilidade da multa e advertência.
Na verdade, o §4º do artigo 158 da Lei 14.133/2021não dialoga com o seu caput. No entanto através de uma hermenêutica adequada temos que as regras do §4º deveriam ter locus em artigo autônomo, o que mitigaria discussões sobre o alcance da norma.
Como se percebe, no caput (e parágrafos 1º ao 3º) do artigo 158 há contornos mínimos ao órgão encarregado de apurar as infrações e aos prazos de atos processuais, matérias que não guardam pertinência com aquela prevista no §4º do mesmo artigo, que trata da prescrição da pretensão punitiva.
Por isso, entendemos que a melhor exegese é que o artigo 158, §4º, disciplina a prescrição de todas as penalidades previstas no artigo 156 da lei 14.133/2021.
O ponto nuclear, no entanto, concerne à prescrição intercorrente, isto é, aquela que incide no curso do processo disciplinar, pela paralisação injustificada ao longo do tempo e que não foi disciplinada em sede do artigo 158, §4º.
Disso resultam, ao menos, duas consequências jurídicas importantes.
A uma, que em observância à limitação de incidência da norma, o prazo de três anos de prescrição intercorrente, previsto no artigo 1º, §1º da Lei nº 9.873/99, será aplicável às infrações previstas na lei nº 14.133/2021, para a Administração Pública federal.
É que a prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 se harmoniza com a garantia fundamental da duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CF) com o princípio da eficiência administrativa (prevista na CF) e adicionalmente pune a morosidade do Estado sancionador em prol do administrado e da estabilidade/segurança das relações sociais e jurídicas.
A duas, que não existe óbice jurídico ao efetivo diálogo da Lei nº 14.133/2021 com a Lei nº 9.873/99, aplicando essa, em complemento daquela (de forma subsidiária), uma vez que a Lei nº 9.873/99 é norma geral em matéria prescricional no âmbito da Administração Pública federal, não havendo motivo que autorize uma interpretação restritiva a afastar a regra do §1º do artigo 1º da Lei nº 9.873/99 às infrações da Lei nº 14.133/2021.
A outra questão envolve os Estados e Municípios que ante lacuna normativa de lei própria (ou lei nacional) estabelecendo a disciplina em casos de prescrição intercorrente, permanecem sem a aplicação desse instituto nos processos de apuração de responsabilidade instaurados na forma da Lei 14.133/2021.
Por mais lamentável que seja essa conclusão, capaz de gerar processos extremamente longos, contrariando uma pauta de princípios como a eficiência, moralidade, razoabilidade e a justiça o fato é que o trabalho do exegeta não pode resultar na criação de norma estabelecendo prazo prescricional ao direito punitivo estatal em sede de Municípios e Estados.
A reserva de lei em matéria sancionatória, disciplinando prescrição, confere segurança jurídica, tanto à sociedade como aos administrados e jurisdicionados. No entanto cabe notar que a disciplina da prescrição intercorrente nos estados e municípios é tão desejada que a própria Lei nº 14.133/2021 pressupôs já a existir, uma vez que previu no artigo 158, §4º, inciso III, hipótese de suspensão da prescrição por fato (decisão judicial) que inviabilize a conclusão da apuração administrativa.
De toda forma, a boa doutrina entende que ante a lacuna de previsão legal da prescrição intercorrente nos processos sancionatórios dos Estados e Municípios, inaplicável será a previsão do artigo 158, §4º, III, da Lei nº 14.133/2021 a esses entes federativos.
O ideal, contudo, seria o tratamento uniforme da prescrição intercorrente em todo o território nacional.
Por fim, merece comentário adicional a hipótese de suspensão da prescrição citada no artigo 158, §4º, III, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos.
O legislador previu a suspensão da prescrição tão somente por decisão judicial, esquecendo-se que a decisão do juízo arbitral também poderá resultar em obstáculo a continuidade do processo administrativo.
Observe-se que a lei estipula como causa de extinção do contrato administrativo a decisão arbitral (artigo 138, III), assim como estabeleceu a arbitragem como meio de prevenção e resolução de controvérsias (artigo 151), reconhecendo sua juridicidade, o que, numa interpretação extensiva da lei 14.133/2021, confere completude ao seu sistema normativo e nesse sentido concluímos que a decisão arbitral também pode suspender o fluxo prescricional no processo administrativo de punição.
Célio Eduardo Nunes Leite é Advogado da CHESF ELETROBRAS. Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade Maurício de Nassau; Consultor em Licitação e Contratação Pública.