Decisão coordenada: eficiência, integração administrativa e segurança jurídica
- 7 de janeiro de 2022
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
A Lei nº 14.210/2021 acrescentou um importante tema ao processo administrativo brasileiro: a possibilidade de haver uma decisão coordenada na Administração Pública federal. O projeto de lei, de autoria do senador Anastasia, tem como inspiração histórica a Lei italiana nº 241/99, que havia instituído a conferenza di servizi (ou seja, a conferência de serviços). Isto é, trata-se de uma ferramenta prevista numa lei que tem mais de 30 anos no solo italiano e que também está, de forma similar, estabelecida no Código de Procedimento Administrativo português desde 2015 (por meio da chamada conferência procedimental). Mas, afinal, o que essas expressões representam?
Vejam por que é interessante e a razão pela qual vale a pena nos atermos a isso. É que para determinadas situações interorgânicas, ou seja, nas situações que envolvam mais de um órgão ou entidade da Administração federal, e nas quais exista a importância e a necessidade de uma harmonização de compreensões a respeito de determinados assuntos, ao invés de haver uma contraposição, ou, eventualmente, um conflito de compreensões, a Lei 14.210/2021 autoriza que as autoridades administrativas “sentem-se à mesma mesa” e desenvolvam uma espécie de negociação multilateral, a qual permitirá a edição de um ato administrativo, uma decisão administrativa que envolverá todos os órgãos correlacionados nessa decisão coordenada e que gerará efeitos multipartes.
Vejam como é importante a compreensão desse tema para a questão da consensualidade e do desenvolvimento de soluções negociadas que disciplinem o funcionamento da Administração Pública e que, inexoravelmente, incidirão sobre os direitos e deveres dos administrados.
Imaginem uma empresa que conte com vários departamentos, com vários órgãos, com várias pessoas, e que precisem, entre si, harmonizar o funcionamento dessa empresa. Claro que é perfeitamente possível, em tese, que o diretor ou presidente da empresa baixe uma regra na qual todos se conformem. Alguns vão se regozijar com essa regra e outros vão ficar contrariados e ter dificuldade em executá-la. E, eventualmente, o diretor ou presidente não deterá todas as informações necessárias e suficientes para saber as razões pela qual um dos seus departamentos entende válida aquela compreensão e outro ou outros departamentos reputam que aquela forma de resolver o problema não é adequada. Logo, em empresas já se consolidou que existe uma necessidade de se incorporarem processos de negociação cotidiano interno. A empresa tem um interesse comum: o sucesso dela! E os departamentos têm, muitas vezes, interesses antagônicos e, por isso, podem surgir conflitos entre si. E é muito difícil negociar um conflito depois que ele já é posto.
Por isso, é muito importante que haja processos de negociações na empresa, processos de negociações multidepartamental, os quais implementem uma decisão harmônica, que nem todos vão necessariamente concordar com o seu conteúdo, mas irão gostar de ter participado da solução final. Essa é a lógica que está por detrás da Lei nº 14210/2021.
Analogicamente falando, nós podemos imaginar que os conflitos interorgânicos da Administração federal até podem ser resolvidos por meio de portarias, decretos e outros atos normativos que, top-down (de cima para baixo), instituam como os órgãos, entidades e agentes devem se comportar. Mas isso é muito custoso, demora muito, atiça conflitos e contraposições; gera pessoas, muitas vezes, insatisfeitas com as subsunções “de cima para baixo”.
Diante disso, afigura-se muito importante que nós nos apercebamos do significado, para toda a Administração Pública brasileira, da Lei nº 14.210. Ela preceitua o que vem a ser a decisão coordenada no âmbito da administração pública federal, senão vejamos:
“§1º. Para os fins desta lei, considera-se decisão coordenada a instância de natureza interinstitucional ou intersetorial que atua de forma compartilhada com a finalidade de simplificar o processo administrativo mediante participação concomitante de todas as autoridades e agentes decisórios e dos responsáveis pela instrução técnico-jurídica, observada a natureza do objeto e a compatibilidade do procedimento e de sua formalização com a legislação pertinente” (Incluído pela Lei nº 14.210, de 2021).
Nesse sentido, a decisão coordenada é uma forma de atuação cooperativa, negocial, de articulação administrativa por parte da Administração Pública federal. Por meio da Lei nº 14.210/2021, os órgãos e entidades são incentivados a desenvolver esforços colaborativos, a fim de negociar soluções multipartes, inclusive, com incidência unitária em seus polos ativos — isto é, àqueles sujeitos administrativos que se digladiam, mas que podem se resolver e a quem serão imputados os atos —, e também seus polos passivos, as pessoas físicas ou jurídicas de direito privado que experimentarão direta ou indiretamente os efeitos do ato.
Conforme já alinhavado neste texto, o Código de Procedimento Administrativo português, de 2015, preceitua em seu artigo 77 que as conferências procedimentais se destinam ao exercício em comum ou conjugado das competências de diversos órgãos da Administração Pública, no sentido de promover a eficiência, a economicidade e a celeridade da atividade administrativa. Essa é a lógica da Lei nº 14.210/2021. Quando eu falo em decisão coordenada, eu falo em eficiência, em economicidade, em celeridade da atividade administrativa e, mais do que isso, eu falo em segurança jurídica.
E talvez a conclusão mais importante esteja justamente na natureza e no regime jurídico do ato administrativo que resulta desse processo decisório apartado, acessório e sui generis. Haverá essa integração das autoridades, que resultará na prática de um ato unitário, e não de um feixe de atos, mas de conteúdo complexo, praticado quando for positivo, ou seja, quando houver uma solução do pseudoconflito. Vejamos, portanto, como isso se dá no caso brasileiro.
A possibilidade de se instalar o processo de decisão coordenada pode se dar desde que a matéria seja relevante (49-A, I) e que essa importância demande articulação, ou se, nos termos do 49, II, houver discordância que prejudique a celeridade do processo decisório.
Em contrapartida, ele é proibido, nos termos do artigo 49, A, §6º, I, II e III, em processos administrativos que envolvam: a) licitação; b) poder sancionador; ou c) em que estejam envolvidas autoridades de poderes distintos. Por exemplo, não pode haver uma decisão coordenada entre um órgão ou entidade da administração pública federal e o Tribunal de Contas da União (ou um membro/entidade do Poder Judiciário).
Dessa ordem de processo decisório deverão participar, coletivamente, não só os órgãos e entidades imediatamente envolvidos, mas é possível também que se envolvam aqueles interessados que atendam os requisitos do artigo 9º da Lei nº 9784/99, dispositivo que alarga a possibilidade de participação. Todos os órgãos e entidades deverão, nos termos do artigo 49-E, apresentar um documento específico sobre o tema, atinente à respectiva competência, a fim de subsidiar os trabalhos e integrar o processo de decisão coordenada. Isso instalará um processo de deliberação colegiada, que culminará, em prazo razoável, em ata a ser assinada por todos os órgãos e entidades participantes. Nessa ata deverá constar, além do relatório e síntese, o registro das orientações, das diretrizes, das soluções ou das propostas de atos relativos ao objeto da convocação.
Em segundo lugar, deverá constar na ata o posicionamento expresso dos participantes para subsidiar futura atuação governamental em matéria idêntica ou similar. Em terceiro lugar, deverá constar do relatório a decisão de cada órgão ou entidade relativa à matéria sujeita à sua competência. Haverá, portanto, uma multiplicidade de decisões (imputadas aos respectivos órgãos). Isto é, do processo de decisão cooperativa, decisão coordenada, haverá uma decisão positiva, coletiva, com dois níveis de normatividade: serão descritos nessa ata os temas gerais, que promovam uniformização superior às partes envolvidas; e os temas especiais, relativos à competência privativa de cada órgão ou entidade. Existirá, portanto, um ato administrativo plurissubjetivo e complexo, eis que emana de várias pessoas e pode conter múltiplos assuntos, todos enfeixados e uniformizados numa só ata/decisão: a decisão coordenada.
Como se constata, portanto, a decisão coordenada tem a finalidade de permitir a participação, a integração de todos os legitimados e interessados na futura decisão administrativa, a fim de não só acelerar, gerar vantagens de eficiência, mas, principalmente, a fim de conferir unidade a processos decisórios complexos, que digam respeito a mais de um órgão ou entidade da Administração Pública federal. Isso, sem dúvida alguma, é muito bom, porque incrementa o diálogo, incrementa a participação democrática, o consensualismo e a confiança na formação dos atos administrativos. E, por outro lado, o que também é igualmente importante, diminui os conflitos e os respectivos custos de transação, harmonizando e conferindo estabilidade a perspectivas e soluções consensuais.
É um novo Direito Administrativo. É um Direito Administrativo da confiança. Do acolhimento. Da consensualidade. Por isso, devemos saudar a Lei nº 14.210 e essa nova disposição, esse novo capítulo da Lei nº 9784/99.
Flávio Germano de Sena Teixeira Júnior é advogado, assessor especial da Secretaria de Estado de Projetos Especiais do Governo do Distrito Federal, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife – UFPE.