Decreto Federal 11.246/2022: Uma abordagem sob a ótica da teoria dos poderes implícitos e do princípio da segregação de funções
- 11 de novembro de 2022
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Um dos mais aguardados regulamentos federais da Lei n.º 14.133/2021, foi finalmente publicado. Trata-se do Decreto n.º 11.246/2022, que regulamenta, no âmbito da Administração Pública Federal, a atuação do agente de contratação, da comissão de contratação, dos membros da equipe de apoio e dos fiscais e gestores de contratos celebrados sob a égide da nova lei de licitações e contratos.
Mas, afinal, quem é esse tal de agente de contratação?
Apesar de parecer simples e fácil a resposta para essa pergunta, há nela uma série de pormenores imprescindíveis para a formulação de um pronunciamento alinhado com a teoria e a realidade da administração pública brasileira.
De acordo com o art. 8º da Lei n.º 14.133/2021, o agente de contratação será o responsável pela condução da licitação:
Art. 8º A licitação será conduzida por agente de contratação, pessoa designada pela autoridade competente, entre servidores efetivos ou empregados públicos dos quadros permanentes da Administração Pública, para tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento licitatório e executar quaisquer outras atividades necessárias ao bom andamento do certame até a homologação.
Pode-se deduzir do dispositivo legal que ficará sob responsabilidade do agente de contratação a condução do certame, desde o momento em que o mesmo for divulgado para os interessados até o seu encaminhamento para adjudicação e homologação, a ser realizada pela autoridade competente para tal ato.
Dessa forma, será ele, agente de contratação, encarregado de receber e decidir pedidos de esclarecimentos e impugnações, presidir a sessão pública, julgar as propostas, avaliar a habilitação, administrar a etapa recursal, manifestando-se em face de eventual recurso e, por fim, encaminhar o processo para as instâncias competentes para a adjudicação do objeto ao licitante vencedor e a homologação do certame.
Ocorre, no entanto, que a redação legal não se limitou a fixar a competência do agente de contratação de forma clara, objetiva, sem obscuridades. Isso porque o legislador especificou apenas algumas das ações que podem ficar a cargo do agente de contratação, tais como: tomar decisões, acompanhar o trâmite da licitação, dar impulso ao procedimento e executar quaisquer atividades necessárias ao bom andamento do certame.
Essa exposição de atividades a serem exercidas pelo agente de contratação, redigidas por meio de uma linguagem aberta, subjetiva e, portanto, excessivamente interpretativa, permitiu que se proliferassem teorias sobre o alcance das expressões presentes na lei.
Ora, bastava dizer que o agente de contratação seria o responsável pela condução da etapa externa da licitação e, por conseguinte, deixar sob discricionariedade de cada órgão ou entidade definir internamente os limites operacionais dessa função, respeitando, evidentemente, os princípios que regem o regime jurídico administrativo e a legislação de pessoal aplicável em cada órgão licitante.
Nos termos do Decreto n.º 11.246/2022, no âmbito da Administração Pública Federal caberá ao agende de contratação, dentre outras atribuições:
Art. 14. Caberá ao agente de contratação, em especial:
I – tomar decisões em prol da boa condução da licitação, dar impulso ao procedimento, inclusive por meio de demandas às áreas das unidades de contratações, descentralizadas ou não, para fins de saneamento da fase preparatória, caso necessário;
II – acompanhar os trâmites da licitação e promover diligências, se for o caso, para que o calendário de contratação de que trata o inciso III do caput do art. 11 do Decreto nº 10.947, de 25 de janeiro de 2022, seja cumprido, observado, ainda, o grau de prioridade da contratação; e (…)
Merece destaque o uso da expressão “saneamento da fase preparatória”, constante do inciso I, bem como a expressão “promover diligências”, constante do inciso II. Ao que tudo indica, o regulamento agrava o já criticado subjetivismo legal referente ao tema, potencializando as dúvidas.
Mais adiante, no mesmo artigo, há uma tentativa frustrada de estabelecer os contornos de atuação do agente de contratação durante a etapa preparatória:
§ 2º A atuação do agente de contratação na fase preparatória deverá ater-se ao acompanhamento e às eventuais diligências para o fluxo regular da instrução processual.
§ 3º Na hipótese prevista no § 2º, o agente de contratações estará desobrigado da elaboração de estudos preliminares, de projetos e de anteprojetos, de termos de referência, de pesquisas de preço e, preferencialmente, de minutas de editais.
É a partir desses excertos, extraídos do regulamento federal, que examinaremos questões relevantes para a compreensão do assunto.
A Teoria dos Poderes Implícitos, de origem norte-americana, parte do pressuposto de que, quando a Constituição atribui a um órgão competência para determinada finalidade, deve oferecer, paralelamente, os meios, os instrumentos capazes de viabilizar o exercício desse encargo.
No caso do agente de contratação, quando a norma, no caso tanto a lei como o regulamento federal, lhe impõem o dever de promover diligências ou impulsionar o procedimento por meio do saneamento da fase preparatória, deve haver concomitantemente um poder, um mecanismo para execução desses atos.
Em outras palavras, para a execução das atribuições que lhe são impostas, o agente de contratação deverá assumir, salvo melhor juízo, uma posição hierárquica de caráter administrativo sobre as unidades responsáveis pelo planejamento, sob pena de inviabilizar o exercício das suas atribuições.
Sob uma ótica pragmática, se eventualmente um departamento estiver atrasado quanto à confecção de um dos artefatos do planejamento, caberá ao agente de contratação “impulsionar” ou “diligenciar” nesse processo, mas isso só poderá ser feito se lhe for concedido alguma espécie de instrumento que lhe permita exigir dos responsáveis o cumprimento das suas obrigações.
Ocorre que ao assumir esse papel de “cobrança”, o agente de contratação estará, na verdade, ocupando uma posição que deve ser exercida pelo gestor da área técnica relacionada ao objeto da contratação. Nas áreas de tecnologia da informação, de engenharia, de patrimônio, dentre outras, há gestores formalmente designados, responsáveis técnica e administrativamente pelo trabalho dos seus subordinados.
Assim, aplicando-se analogicamente a teoria dos poderes implícitos à atuação do agente de contratação, ela somente seria válida se também lhe fossem conferidos poderes para o exercício do seu mister. Infelizmente o decreto federal não indica como dirimir essa questão.
Cabe aqui ressaltar que mesmo considerando a possibilidade do agente de contratação se responsabilizar apenas pelo cumprimento do cronograma da contratação, durante a etapa preparatória, as medidas concretas por ele adotadas necessárias ao atingimento desse objetivo não deixariam de possuir esse caráter hierárquico, ainda que indiretamente.
Para além desse primeiro ponto, há que ser considerado também o princípio da segregação das funções, que não representa novidade no âmbito das contratações públicas brasileiras, sobretudo porque há farta jurisprudência e doutrina relativos ao tema.
Antes de mais nada, é importante reforçar a ideia geral que sustenta o princípio da segregação de funções, o qual busca prevenir falhas ou vícios no processo, atribuindo a agentes públicos diversos, responsabilidades pelas diferentes etapas do processo de contratação. Nessa linha de pensamento, por exemplo, quem planeja não pode realizar a licitação, quem conduz a licitação não deve fiscalizar o contrato, quem fiscaliza não deve autorizar o pagamento, e assim por diante.
Ao fim e ao cabo, o princípio da segregação de funções representa, em termos práticos, um mecanismo de controle do processo de contratação, na medida em que busca distribuir poderes para agentes distintos tomarem decisões durante o procedimento, criando uma estrutura interna de detecção de erros, falhas e vícios.
Pois bem, ao prever que o agente de contratação exercerá parte de suas atribuições durante a etapa preparatória, a norma cria hipoteticamente uma sobreposição entre funções que, a princípio, deveriam ser segregadas.
É que mesmo não sendo responsável pela elaboração dos documentos do planejamento, o exercício dos poderes que lhe são atribuídos pelo regulamento o colocam em posição de intervenção no processo, mediante promoção de diligências ou medidas saneadoras.
Admitir que o agente de contratação tenha um relacionamento com os setores incumbidos do planejamento, que mais lembra a de um verdadeiro “gerente” do processo, e que ele não será influenciado pelas orientações, discussões, explicações e demais manifestações técnicas produzidas a partir da sua própria atuação pode não se harmonizar com a realidade administrativa.
Conclusão
Portanto, podemos concluir que o Decreto Federal 11.246/2022 vincula apenas os órgãos e entidades que compõem o Sistema Integrado de Serviços Gerais – SISG, cabendo aos demais órgãos e entidades regulamentarem internamente a forma de atuação do agente de contratação.
É possível, por exemplo, estabelecer que o agente de contratação terá, no âmbito das licitações processadas com base na nova lei, as mesmas atribuições que o pregoeiro já vem desempenhando na instituição, medida que não afetaria de o fluxo de trabalho, neste ponto.
A transição entre os regimes legais tem sido um grande desafio. Por isso, quanto menos rupturas pudermos fazer, melhor, especialmente porque o tempo para adaptação ou experimentação é reconhecidamente insuficiente.
Evaldo Araújo Ramos é Auditor Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União em Brasília, onde já atuou como Diretor de Licitações, pregoeiro, leiloeiro e presidente de comissões especiais de licitação. Pós-graduado em Licitações e Contratos, bacharel em Direito e Administração de Empresas.