Devo sempre licitar, mesmo quando couber contratação direta?
- 21 de abril de 2023
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Introdução
Ao prever expressamente o dever de licitar, a própria Constituição Federal de 1988 ressalva que, nos casos especificados na legislação, tal dever de licitar poderá ser afastado[1].
Em decorrência de tal previsão constitucional, foram editadas normas gerais de licitação[2], prevendo tanto as modalidades de licitação quanto as hipóteses de contratação direta sem licitação, sem prejuízo de se reconhecer que outras leis além das normas gerais de licitação também fixaram hipóteses específicas de contratação direta, conforme já pontuei em artigo publicado aqui neste perfil do Linkedin.
Com isto, em cada caso concreto onde a Administração Pública enquadrar corretamente em uma das hipóteses legais de contratação direta, poderá ser utilizada tal opção sem que se configure qualquer ilegalidade, mesmo diante do dever constitucional de licitar.
O consequencialismo decisório
Em casos onde o gestor se depara com duas alternativas igualmente amparadas na legislação, surgem dúvidas acerca de quais critérios devem ser levados em consideração no momento de se tomar a decisão. E nessa hora é comum o gestor se orientar com base na aplicação de princípios jurídicos, que são valores jurídicos abstratos, sem uma definição precisa ou tipificação prevista claramente em lei.
Ao reformar a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, o Congresso Nacional trouxe para o texto legal o consequencialismo decisório, que positivou o dever de se levar em conta as consequências práticas da decisão além do mero formalismo.
Na lição dos professores Carlos Ari Sundfeld e Guilherme Jardim Jurksaitis[3]:
Não basta dizer qual é o direito, qual é o princípio a ser aplicado; é preciso motivar adequadamente, considerando os efeitos da decisão no caso concreto e até mesmo as possíveis soluções alternativas, cujas razões de serem preteridas devem ser ponderadas e expostas (art. 20 da Lei de Introdução, na redação do Projeto de Lei).
No que se refere à decisão acerca do uso da licitação ou da contratação direta, por exemplo, quando a legislação permitir ambas, incumbe ao gestor ponderar quais seriam as consequências práticas de cada alternativa disponível, nos termos do que preconiza a LINDB:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Em consonância com o que fixa a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999[4], que exige a motivação do ato administrativo, a LINDB determina que tal motivação deve demonstrar tanto a necessidade quanto a adequação da medida adotada pelo gestor, sendo que os órgãos de controle levarão em conta tais ponderações quando do julgamento de tal ato administrativo.
Relatório de Avaliação da CGU – dispensa X pregão
Ao realizar avaliação das dimensões de eficiência e eficácia das contratações públicas realizadas pelo Poder Executivo Federal por meio da modalidade licitatória pregão, na forma eletrônica, no período de 18/07/2018 a 30/04/2022, a Controladoria-Geral da União-CGU empregou esforços para avaliar o impacto da adoção de pregões deficitários e os benefícios auferidos com a adoção de medidas para mudança do cenário[5].
Em decorrência de tais exames, a CGU identificou pregões eletrônicos deficitários instaurados no período examinado, e constatou que parte destes poderiam ter adotado procedimento menos oneroso, qual seja a dispensa de licitação em razão do valor.
Segundo a CGU, os referidos pregões deficitários apresentam um custo de realização superior ao valor estimado para as aquisições de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, o que justificaria a adoção de procedimento menos oneroso à administração pública, em alinhamento com o princípio constitucional da eficiência.
Comparando o custo processual de um pregão eletrônico com o de uma dispensa de licitação por valor, a CGU concluiu que:
“tal cenário sugere a necessidade de estabelecimento de orientações por parte do órgão central do Sisg para que os compradores públicos observem, durante a definição da modalidade licitatória a ser adotada para aquisição de bens e serviços comuns, o custo do procedimento administrativo, a fim de priorizar a dispensa em razão do valor nos casos em que os valores estimados das contratações se encontrem nos limites de valores passíveis de sua utilização”
Ao final do referido Relatório de Avaliação, a CGU apresentou tal orientação à Secretaria de Gestão do então Ministério de Economia, que resultou da publicação da Orientação 38[6], disponibilizada no Portal de Compras do Governo Federal, conforme abaixo transcrito.
A Secretaria de Gestão, enquanto órgão central do Sistema de Serviços Gerais (Sisg), orienta aos jurisdicionados que priorizem a adoção do procedimento de dispensa de licitação, nos termos da Instrução Normativa nº 67, de 8 de julho de 2021, em observância ao princípio da eficiência, justificando, nos autos, caso opte pela realização do pregão eletrônico nos processos que, nos limites de valor, seja possível a utilização da dispensa de licitação.
Com isto, observa-se a necessidade dos órgãos federais justificarem a realização de pregão eletrônico, sempre que seja possível a utilização da dispensa de licitação em razão do valor.
Conclusões
Mesmo que a Constituição Federal preveja o dever de licitar, ela mesma permite ao legislador afastar a licitação nos casos expressamente previstos em lei, sendo que além das normas gerais de licitação, diversas outras leis criaram hipóteses de contratação direta.
Ao decidir pela forma como se dará a seleção dos fornecedores, o gestor precisa ponderar as consequências práticas da decisão, devendo analisar qual é a melhor alternativa disponível.
Ao analisar a eficiência e eficácia das contratações públicas dos órgãos federais, a CGU constatou que alguns pregões eram deficitários, sendo mais recomendado nesses casos o uso da dispensa de licitação por valor.
Em consequência da recomendação da CGU, a SEGES/ME orientou aos órgãos federais que justifiquem nos autos sempre que adotarem a modalidade de licitação pregão, em detrimento da dispensa de licitação por valor quando esta for legalmente cabível.
Ronaldo Corrêa – Graduado em Logística e foi aluno do Mestrado Profissional em Administração Pública (Profiap) na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atuou desde 2007 em diversas funções técnicas e gerenciais, como chefe do Setor de Administração e Logística (SELOG), pregoeiro e Coordenador de Licitações (COLIC), na Polícia Federal (PF) e Controladoria-Geral da União (CGU). É docente do Programa de Gestão da Logística Pública da Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Atua como instrutor de cursos de capacitação em escolas de governo, órgãos públicos e instituições privadas. Foi integrante da delegação brasileira no study tour realizado aos Estados Unidos da América em 2018, no âmbito da Global Procurement Initiative (GPI), realizada pela U.S. Trade na Development Agency (USTDA em parceira com o então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG), atual Ministério da Economia (ME).
Referências Bibliográficas
[1] Art. 37, XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
[2] Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 e Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021.
[3] Transformações do direito administrativo: consequencialismo e estratégias regulatórias /Fernando Leal, José Vicente Santos de Mendonça (organizadores). – Rio de Janeiro : Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, 2016. (p. 23). Disponível em https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/18009/Transforma%c3%a7%c3%b5es%20do%20Direito%20Administrativo.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso em 17/04/2023.
[4] Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos… Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm#art50. Acesso em 17/04/2023.
[5] Disponível em https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/download/1371061, acesso em 17/04/2023.
[6] Disponível em https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-e-procedimentos/38-recomendacao-sobre-a-priorizacao-do-uso-da-dispensa-de-licitacao-na-sua-forma-eletronica. Acesso em 17/04/2023.