Dispensa e inexigibilidade de Licitação: Todas as hipóteses são Normas Gerais também na Nova Lei de Licitações
- 18 de março de 2022
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
I – Este breve artigo foi atualizado em 20 de março de 2.021, sendo que a data fatal para a sanção ou o veto da nova lei nacional de licitações e contratos é 3 de abril de 2.021. Após uma história incerta, atribulada, tormentosa e demoradíssima, enfim os dados estão lançados, e, diria o filósofo, agora ou vai ou racha. Por que, então insistir num texto originariamente escrito para a lei antiga, a Lei nº 8.666, de 1.993, se quando da sua publicação a nova lei já estará em vigor?
Por alguns motivos, é a resposta.
Em primeiro lugar, a confiar em regras básicas do projeto aprovado pelo Congresso e já em poder do Executivo, e que não serão alteradas, a nova lei não revoga a Lei nº 8.666/93 imediatamente na data da entrada em vigor, mas apenas dois anos após a publicação projeto, art. 190, a conferir na lei).
Quem quiser utilizar desde logo a nova lei, pode fazê-lo. Quem preferir seguir com a antiga por até dois anos após a publicação da nova, também pode. Quem, por fim, quiser usar ora a nova, ora a velha – sem as misturar jamais em licitação alguma! – também pode. Estamos, afinal, numa democracia! [1]
Então, o governo terá tempo se quiser de licitar a transposição do rio Amazonas, ou uma nova Belém-Brasília, ou uma nova usina Itaipu, tudo ainda pela Lei nº 8.666/93!
Pode desde logo lançar o edital… e até por uma razão das mais simples em direito: licitação que for regida pela lei atual seguirá pela mesma lei atual, com seu respectivo contrato, até o dia do apocalipse ou do armagedon, até a produção do último efeito do contrato. Sim, porque a licitação e o contrato são (pressupostamente, até prova em contrário) atos jurídicos perfeitos, e a lei nova não prejudica o ato jurídico perfeito segundo manda a Constituição, art. 5º inc. XXXVI.
II – Um segundo motivo de interesse nesta publicação é a constatação de que mesmo na nova lei todas as hipóteses de contratação direta por dispensa ou por inexigibilidade – como de resto todas as regras da lei – são por ela classificadas como normas gerais de licitação e contrato, tal qual ocorria na lei de 1.993.
O mesmo patético e antitécnico exagero, a mesma grosseiríssima generalização do que deveriam ser normas gerais, que toda a doutrina denunciou por décadas na lei de 1.993, agora se repetiu, a demonstrar sobre o legislador brasileiro que, com todo efeito, o pior cego é o que não quer ver.
Então, também nas contratações direitas o que eram normas gerais continua a ser normas gerais. E as hipóteses, na nova lei, são quase exatamente as mesmas da lei de 1.993, apenas redacionalmente rearranjadas. Vejam-se os art. 73 e 74 do projeto, a conferi-los na lei, a qual a seu turno e de resto confirma o dito francês de que plus ça change, plus c`est la même chose.
Então e assim sendo, o que se sabia de dispensa e inexigibilidade na lei de 1.993 pode ser quase que totalmente aproveitado para a nova lei.
Assim, reproduz-se a seguir a redação originária deste artigo, de 2.000, pois que a sua inatualidade, em matéria de fundo, é mínima.
III – Por mais que passe o tempo, em matéria de licitações o tema mais controvertido, e suscitador das mais intermináveis discussões entre estudiosos, aplicadores da legislação, fiscais daquela aplicação e fornecedores da Administração permanece sendo o da dispensa e da inexigibilidade de licitação, exatamente as hipóteses em que ela é excluída.
Com efeito, tal qual em medicina um dos maiores problemas ao profissional é diagnosticar com que doença está lidando, no trato das licitações a primeira grave dificuldade consiste em saber quando não é caso de licitar.
Sim, porque é sabido que licitação dispensada ou declarada inexigível constitui exceção à regra geral, tanto constitucional quanto legal, da obrigatoriedade de licitação sempre que a Administração deseje, em uma hipótese, contratar obra, serviço ou fornecimento de material, ou em outra hipótese deseje contratar concessão de uso de bem público (administrativa sem maior especificidade, ou sob a forma de concessão de direito real de uso de bem público), concessão de obra pública, concessão de serviço público, ou em uma terceira hipótese deseje outorgar permissão de uso de bem público ou permissão de serviço público.
Constituindo exceção regra geral da obrigatória licitação, as exceções a essa regra estão sempre previstas de modo expresso na lei, seja ela qual for. Na primeira hipótese, contratação de obra, serviço ou fornecimento, as hipóteses excludentes de licitação se acham discriminadas, específica ou genericamente, nos arts. 24 e 25, da lei nacional de licitações, a Lei federal nº 8.666, de 21 de junho de 1.993.
Na segunda e na terceira hipóteses, concessões e permissões, a matéria é de ser disciplinada por legislação local, uma vez que tal matéria é insuscetível de disciplinamento geral por lei federal que valha para toda esfera de governo.
IV – Eis aí enunciado o primeiro problema a enfrentar: o que pode constituir norma geral de licitação e contratação. Apenas o que constituir norma geral de licitação poderá ser disciplinado uniforme e generalizadamente pela União, por lei, para a própria União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, graças à competência legislativa reservada à União para isso pelo art. 22, inc. XXVII, da Constituição de 1.988.
O impasse surgiu com a espantosa previsão constante do art. 1º, da Lei nº 8.666/93, que determina serem normas gerais de licitação e contrato todas as suas previsões, num conjunto de 126 longos e em geral tecnicamente pavorosos artigos, alguns dos quais contenedores de matéria que, por seu casuísmo e sua microscópica particularidade, não mereceria figurar sequer de decreto do Executivo, constituindo matéria de mera instrução.
Esse absurdo, patenteado e alardeado por toda a doutrina brasileira desde a edição da lei em 1.993, suscita as mais declaradas dissenções entre todo o público envolvido com licitações, e mereceu figurar como tema inicial desta exposição para o efeito de, desde já, declararem-se inequivocamente normas gerais de licitações e contratos as hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação. Se muitos artigos da Lei nº 8.666, e diversamente do que insinua a lei, não contêm normas gerais de matéria alguma e de coisa nenhuma, esse não é o caso das hipóteses excluidoras de licitação.
No Decreto-lei nº 2.300, de 21 de novembro de 1.986, não existia dúvida quanto ao acima afirmado, pois que aquele diploma, que diretamente antecedeu e inspirou a Lei nº 8.666, já declarava de modo expresso, em seu art. 85, parágrafo único, al. a, que os casos de dispensa e inexigibilidade não podiam ser ampliados por legislação local. Doutrinadores como Toshio Mukai desde logo se pronunciaram a respeito dessa questão, reafirmando o caráter geral de normas como as que estabeleciam as hipóteses de dispensa e inexigibilidade, o que depois se confirmou jurisprudencialmente.
Quando a Lei nº 8.666, sucedendo aquele decreto-lei de 1.986, incluiu as dispensabilidades e as inexigibilidades entre suas normas gerais, nada fez senão confirmar o que antes de seu advento já ficara assentado como certo – e quanto a isso ninguém se atreveu a divergir, vista observação que adiante se tece quanto à licitação inexigível.
É importante ter presente esta primeira assertiva, uma vez que se conhecem tentativas de empresas estatais, de variado nível de governo a começar pelo federal, que, a título de exercerem sua autonomia administrativa e sua “independência” com relação à rigidez das normas publicísticas que vigoram para a Administração centralizada e autárquica, quando editam seus regulamentos de licitações acabam com freqüência indo além do permitido, e ampliando o rol das hipóteses de licitação dispensada.
Quanto à licitação inexigível, não é idêntica a sua configuração com relação à dispensável, porque a única característica da licitação inexigível é a inviabilidade de competição, de modo que nem sequer exemplificar hipóteses a lei nacional precisaria, como faz no art. 25.
Bastaria à lei enunciar que será inexigível qualquer licitação cujo objeto seja insuscetível de ensejar competição entre vários possíveis fornecedores, e isso seja pela razão que for, pois muitas podem ser, na prática, as razões por que uma competição se faz impossível: o objeto é único; o objeto somente pode ser fornecido por um vendedor; apenas um autor é o mais indicado para o trabalho intelectual pretendido, ou outras hipóteses.
V – Vista esta primeira observação, vêm à mente exemplos de contratos diretamente efetuados, sem licitação, que merecem comentário em razão d freqüência com que no dia-a-dia da Administração ocorrem, ocasionando uma até enfadonha repetição dos mesmíssimos problemas. Observe-se, antes de adentrarmos aos exemplos, que as dificuldades em se aplicar corretamente a lei são da mais diversa natureza: a lei é obscura e confusa, omitindo pontos essenciais para sua intelecção, ou confundindo idéias que até o momento pareciam claras; ou a lei é repetitiva, contendo vários fundamentos para exatamente o mesmo problema.
Então, ou a lei é contraditória consigo mesma, contendo dispositivos um a negar e contrariar outro; ou o aplicador, diante dos defeitos da lei, não tem segurança para adotar uma tese de dispensa e sustentá-la por inteiro no expediente administrativo.
Ou ainda, de outro modo, o aplicador tem, pessoalmente, convicção da tese dispensiva, porém conhece julgados em sentido inverso, tanto dos Tribunais de Contas quanto por vezes do Poder Judiciário; ou o aplicador não dispõe de elementos comprobatórios da situação que de resto é conhecida pela generalidade das pessoas na comunidade, e com isso não pode carrear ao expediente administrativo a prova material de que necessita para contratar sem licitação.
Ainda alternativamente, talvez o aplicador não saiba que caminho trilhar, se de dispensa, se de inexigibilidade, ante a dupla, ou tripla, ou múltipla, possibilidade que vislumbra no processo; ou o aplicador dispõe de elementos de convicção e conta com rol probatório dessa convicção a juntar ao processo, porém os setores técnicos de sua entidade, sobretudo o jurídico, opinam em contrário à contratação direta, apresentando suas razões e com tanto suscitando conflito interno na entidade.
Ou, ainda, o aplicador não sabe se pode utilizar a mesma possibilidade de contratação direta com base nos incs. I ou I, do art. 24, da lei de licitações, por diversas vezes no mês, por “ouvir dizer que alguém teria dito que dentro do mês apenas uma vez pode ser utilizado cada inciso, ou duas, ou duas vírgula trinta e sete vezes”…
Tantas são, de tal sorte, as dificuldades com que se depara o aplicador da torpe, infame, inglória, infausta, juridicamente nauseabunda e tecnicamente asquerosa Lei nº 8.666/93 – o mais horripilante fruto da presunção e da ignorância jurídica já patenteado no universo legislativo brasileiro desde o descobrimento do país há cinco séculos – que merece uma palavra de auxílio, uma ainda que humilde achega, o que se passa a tentar oferecer.
VI – Primeiro exemplo, ao menos um tanto controvertido, de licitação dispensável: locação ou compra de imóvel, sempre que as suas características peculiares condicionem a escolha (Lei nº 8.666/93, art. 24, inc. X).
Quis a lei permitir ao aplicador, a Administração pública, comprar ou alugar qualquer imóvel, diretamente do proprietário sem licitação, desde que pudesse demonstrar que o imóvel tinha características como localização, tamanho, se edificado a distribuição interna e externa de dependências, equipamentos arquitetônicos e funcionais, vizinhança, utilizações específicas possíveis, e outras ainda sem conta, que o tornassem o mais adequado – dentro do que seja razoavelmente exigível à Administração saber e conhecer – ao uso que o Poder Público interessado lhe destine.
E mais: que o preço seja de mercado, razoável, realístico ou plausível, e não absurdo ou superavaliado, conforme o possa demonstrar, a qualquer tempo, a Administração.
Nem sempre a entidade pública tem condição de atestar categoricamente que aquele imóvel, edificado ou não, demonstra-se o melhor dentre quantos possam existir à venda dentro da área geográfica de interesse; ninguém, sem bola de cristal, o poderia. Nem sempre pode avaliar corretamente o preço, nem mesmo com assessoria experimentada de peritos em avaliação imobiliária, eis que por vezes o imóvel tem características pouco comuns ou usuais no mercado imobiliário, que dificultam o serviço de avaliação até para especialistas.
O que sempre precisa poder demonstrar a Administração é que aquele imóvel em questão reúne condições ao menos próximas das ideais, segundo a finalidade pretendida e a concepção da Administração, e que o preço não refoge da realidade mercadológica, ao menos aproximadamente, o que precisará demonstrar através de avaliações efetuadas por profissionais da área, juntadas ao processo de compra, ou de locação se for o caso.
Cuidou a lei de permitir o negócio direto, desde que parametrado por circunstâncias acautelatórias que, seguramente, serão cobradas pelos Tribunais de Contas a posteriori, de modo a exigir da autoridade contratante o cuidado de inserir no expediente administrativo, antecipadamente, todas aquelas demonstrações – que no mais nenhum mistério envolvem.
A lei, cá como alhures, não é para ser temida por misteriosa e enganadora – até mesmo esta Lei nº 8.666, de 1.993… -, porém cuidadosa e respeitosamente observada em suas exigências, neste ponto claras e compreensíveis.
VII – Segundo exemplo: obras ou serviços de engenharia de valor até R$ 15.000,00; outros serviços e compras de valor até R$ 8.000,00, e o dobro desses valores para as entidades paraestatais. (Lei nº 8.666/93, art. 24, incs. I e II, e parágrafo único).
Neste passo o ponto que se deseja levantar, além de definir o que seja serviço de engenharia – e ele é o serviço que, a teor da nem sempre clara e atualizada legislação, os regulamentos e as instruções disciplinadoras das profissões de engenharia e de arquitetura, exigem a assinatura de um desses profissionais, regularmente inscritos nos Conselhos respectivos, como forma de responsabilização e controle de exercício profissional -, é a freqüência com que podem ser utilizadas essas modalidades de contratação dispensa em razão do valor de cada operação, definido na lei como dispensador do procedimento licitatório.
Os fantasmas e as aparições abantesmáticas e flogísticas de entes misteriosos, que afirmam que alguém teria dito a alguém que somente uma vez por mês poderia ser realizada compra de até R$ 7.999,99, ou contratado serviço de engenharia de até R$ 15.999,99, ou que apenas dentro de um ano é que tais limites poderiam ser exercitados, ou dentro de um semestre, ou apenas dentro de condições muito particulares, tais e quais, assim ou assado.
Essa tremenda empulhação, exemplo de moralismo fácil e próprio de discurso de formatura de colegiais, com forte coeficiente de hipocrisia indisfarçável de fariseus a quem aparentemente falta o que fazer – fariseus desempregados talvez -, não tem o mais longínquo propósito nem a mínima causação jurídica direta, indireta, oblíqua, transversa, próxima ou remota, nem explicação alguma, por mais inventiva.
Se a lei quis que oito ou quinze mil reais fosse o limite da licitação dispensada sem maiores exigências ou condicionamentos, então pode ser adquirido o bem, ou contratado o serviço de valor que dispense licitação quantas vezes forem necessárias, sempre que preciso, em um século, um ano, uma semana, um lustro ou um mês lunar dos fenícios.
Basta que a Administração proceda naturalmente, sem forçar necessidades em verdade inexistentes, sem “picar” ou fragmentar artificial e artificiosamente suas necessidades efetivas, apenas para maliciosamente burlar a regra geral da licitabilidade necessária., e seu procedimento será rigorosamente lícito e legítimo, se utilizar o inc. I ou o inc. II, do art. 24, da lei de licitações, repetidamente em dado espaço de tempo.
Assim como lhe era permitido valer-se indiscriminadamente – se de fato isso lhe era necessário no seu dia-a-dia – dos limites financeiros anteriores aos atuais que foram dados pela Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1.998, também hoje é rigorosamente lícito à mesma Administração pública valer-se repetidamente dos limites atuais. Nada mudou, exceto os valores.
Quem espalha boatarias sobre matéria que desconhece ou que inventa para o momento, como alguma limitação certa ao uso dos incisos I e II, do art. 24, deveria a esta altura do desenvolvimento da ciência jurídica saber que não existe o bicho-papão com que, amiúde, zelosas mamães amedrontam seus filhos de berço, refratários a ingerir a papinha oferecida.
VIII – Terceiro exemplo: compra de bens padronizados, ou compra de componentes originais (art. 24, inc. XVII). Não é bem assim que está redigido o dispositivo da lei quanto a objetos padronizados, porém o tema é sempre bom. Ao se padronizar algum bem, equipamento, objeto, procedimento ou mesmo serviço o que se institui é um norma a ser obedecida.
As normas técnicas da ABNT – Associação Brasileira de Normas Técnicas não faz senão instituir, aglutinar e sistematizar normas e procedimentos sobre uma gama infinita de assuntos e temas, para sobretudo a indústria.
Quem padroniza elege um standard, uma regra rígida a seguir, um padrão necessário de comportamento, de medida, de peso, de cor, de forma, de tamanho, de cheiro, de gosto, de consistência, de dureza, de maleabilidade, de temperatura, de concentração, de princípio ativo, e, por que não, de marca, de tipo, de modelo, de variedade, de espécie, de natureza.
Tudo pode ser padronizado, se a padronização revelar-se lógica, inteligente, econômica, razoável, útil, proveitosa, homogeneizadora, ou de qualquer outro modo interessante para algum efeito ponderável.
Se, nessa esteira, a Administração padroniza, por ato ou norma escrita, a cor de seus carpetes, ou o modelo de suas cadeiras, ou o tamanho de seus aparelhos de ar refrigerado, ou o princípio ativo dos medicamentos que fabrica ou distribui, ou uma marca de máquina (que custa menos, produz mais e melhor, quebra menos e é facilmente reposta), então o único condão deste ato padronizatório, se existir uma pluralidade de fornecedores do objeto padronizado, é o de permitir ao edital de licitação que indique a característica padronizada a ser cotada por quem a tiver para oferecer, nada mais.
Não estará dispensada a licitação se existir uma pletora de possíveis fornecedores, porque não existe nesse caso motivo algum para se eliminar a competição, através da qual a melhor proposta do objeto padronizado, que será indicado expressamente no edital, se for o caso com marca e modelo, poderá ser formulada e aceita.
A única hipótese de licitação inexigível e não dispensável nesse caso será a de existir no mercado apenas um isolado fornecedor do objeto, e será então caso de inexigibilidade por inviabilidade de competição, não se tratando de dispensa.
Estará dispensada a licitação, por outro lado, para a aquisição de componentes e peças de reposição nacionais ou estrangeiras, se a aquisição direta, junto ao fabricante, for condição para a celebração do contrato de manutenção daquele equipamento, conforme prevê o inc. XVII, do art. 24 da lei de licitações.
Curioso e minúsculo, quase microscópico, casuísmo, que a lei das licitações fez constar de seu texto, e que já tem provocado engulhos e resistências por parte de autoridades fiscalizadoras, as quais pelo que se sabe simplesmente não aceitam a dispensabilidade em casos assim.
Lastimavelmente para tais autoridades entretanto, e por mais bem intencionadas que estejam, a entidade pública que se valer do dispositivo tema seu favor a letra expressa da lei, bastando a ela demonstrar que a condição de contrato de exclusividade de compra de componentes é cláusula expressa do contrato de manutenção, para que a aquisição daqueles componentes seja lícita.
IX – Quarto exemplo: aquisição de bens destinados exclusivamente à pesquisa científica, com recursos concedidos por entidades de fomento à pesquisa credenciadas pelo CNPq (art. 24, inc. XXI).
Aos relativamente poucos usuários deste permissivo, é de saber que uma folha de papel sulfite utilizada pelo pesquisador para anotar sua pesquisa pode ser comprada sem licitação com base neste inciso; garrafas de água mineral, que servirá para aplacar a sede dos pesquisadores no campo, idem; botas para o pesquisador trabalhar, idem, e assim variam até o infinito o número de exemplos de objetos que parecem, à primeira mirada, sem nenhuma relação com o núcleo deste inciso XXI, porém que podem ser adquiridos diretamente com base nele, por indiretamente, de algum modo vincularem-se a pesquisas.
Quer-se com isso recordar que é apenas aparente ou ilusório imaginar que o advérbio exclusivamente restrinja o número de objetos adquiríveis com base neste inciso, pois que é tão vasta a gama dos bens e produtos que se poderão vincular mediata ou imediatamente ao trabalho de pesquisas que em verdade o “moralista” advérbio resta no contexto assim como, digamos, um bobo alegre, tão relevante quanto um refrigerador para esquimós ou a pedra na sopa do conhecido dístico popular – tal qual inúmeros outros advérbios presentes na Lei nº 8.666/93, como os cinco que figuram no § 3º, do art. 46, os quais enfraquecem, até ao ponto de anulá-la por inteiro, qualquer objetiva cogência da lei.
X – Quinto exemplo: a impropriedade da lei quando classifica como simplesmente dispensável a licitação para contratação de objetos que arrisquem ou comprometam a segurança nacional (art. 24, inc. IX), ou a contratação do serviço de fornecimento de energia elétrica (art. 24, inc. XXII).
Dentre as incontáveis impropriedades da lei nacional de licitações, duas que constam deste art. 24 aqui se enumeram: primeira) consta, inc. IX, como simplesmente dispensável a licitação de contrato cuja publicidade possa comprometer a segurança nacional, em casos estabelecidos em decreto do Presidente da República, e ouvido o Conselho de Segurança Nacional.
Ainda que exista um decreto remanescente dos duros tempos do governo militar, o Decreto nº 79.099, de 6 de janeiro de 1.977, denominado o “regulamento para a salvaguarda de assuntos sigilosos” que talvez – na sua insânia – pretenda enumerar as hipóteses, concordamos com Marcos Juruena Villela Souto, para quem essa enumeração é virtualmente impossível (v. obra referida ao final), tendo-se na hipótese do inc. IX um caso de licitação simplesmente proibida, vedada, como corretamente figurava no direito anterior, o Decreto-lei nº 2.300/86.
Ora, imagine alguém que porventura conste uma hipótese no decreto presidencial de negócio estratégico, ora pretendido pelo governo, cuja publicidade comprometa a segurança nacional; ouvido o Conselho de Segurança Nacional, ele confirma a ameaça em caso de publicidade daquele negócio, e ainda assim a autoridade o licita!
Nem em um país do quinto mundo, nem na casa da sogra ou no cafundó do Judas o ordenamento jurídico pode prestigiar uma tal hipótese! Apenas para o autor da Lei nº 8.666/93, talvez democratizante em excesso, um negócio que ameace a segurança do país – e eles existem, com ou sem governo militar, em qualquer país do mundo – pode ser licitado. Recomenda-se: nessa hipótese exemplificada, jamais licite, pena, talvez, de enquadramento na lei de segurança nacional…
Segunda impropriedade) apenas quando houver mais de uma possível empresa fornecedora de energia elétrica, seja estatal, seja privada por concessão, de maneira que permita a competição entre elas numa eventual licitação de prestação de serviço de fornecimento de energia elétrica, é que terá sentido o inc. XXII, do art. 24.
Enquanto o mundo encantado das privatizações e dos múltiplos fornecedores de um mesmo serviço público aos usuários não implementar as maravilhas que promete e apregoa, e enquanto existir apenas uma concessionária de serviço de eletricidade para cada região do país, é evidente que não se tem caso de dispensa de licitação no inc. XXII, mas de inexigibilidade, vez que inviável a competição.
Por enquanto, ainda não foi possível atinar com a motivação que inspirou o autor desse dispositivo, em abril de 1.999 quando se escrevem estas linhas.
XI – Sexto exemplo: contratação de artistas e inexigibilidade de licitação (art. 25, inc. III). De nada adianta, também aqui, pretender a lei revestir esta inexigibilidade de licitação de condições e requisitos, como o de o artista ser consagrado pela opinião pública, ou a crítica especializada, ou bobagem equivalente. Se o artista pretendido não for consagrado nem por um nem por outro então a sua contratação precisará ser licitada? Com que critério de julgamento, o de menor preço?
Venceria um calouro do apresentador Ratinho, de discutíveis pendores para a arte de Caruso e para quem, em função disso, um sanduíche de mortadela como cachê já terá valido a empreita; assim, não serve este critério. O de melhor técnica de imitação de Cauby Peixoto? Nesse caso, a imitação do artista quando ostentava bigode ensejaria talvez maior atribuição de pontos que a imitação na fase atual, sem bigode?
Seria aconselhável quiçá o critério de técnica e preço, em que se combinaria a melhor imitação, com bigode ou sem a depender do edital, com o maior parcelamento para pagamento, que o licitante vencedor consignaria em sua proposta? Alguém consegue imaginar algo mais ridículo?
Ou, por outro lado, estaria pretendendo a lei que se o artista for consagrado pode ser contratado diretamente, e se não o for simplesmente não pode ser contratado, tendo-se algo semelhante a uma contratação que ameace a segurança auditiva nacional?
Então, aquele artista, ainda que não se possa afirmar “consagrado” mas que é conhecido e estimado pela população do pequeno Município interiorano, cuja arte – seja de engolir espadas, seja de cuspir fogo pelas ventas, seja ainda a façanha de executar o scherzo-tarantella de Wieniawsky em octobaixo – é significativamente estimada na localidade, esse, por não ser inquestionavelmente consagrado, estará impedido de ser contratado?
Onde a lógica de tal idéia? Não, nunca! Sendo artista o cidadão, ainda que notório na vizinhança por suas performances vocais durante a ducha matinal ou enquanto prepara o churrasco de domingo, pode ser contratado sem a mínima constrição, nem parâmetro algum senão princípios como razoabilidade ou economicidade ante valores correntios de mercado.
E ainda assim segundo um senso médio que na prática varia de um a cem entre os julgadores, e nada além a lei pode exigir objetivamente como requisito à contratação, por evidente inexigível licitação, já que a competição entre artistas, para fim de o poder público obter “a proposta mais vantajosa”, carece de qualquer sentido.
XII – Sétimo exemplo: contratos de gestão com organizações sociais (art. 24, inc. XXIV). Este tema, o contrato de gestão, aqui foi lembrado apenas pela novidade que representa em nosso direito, a qual é de imaginar que será largamente empregada entre nós, neste ciclo de privatizações e ao que parece definitiva redução do tamanho do Estado.
Contrato de gestão é aquele novo instrumento contratual que vem descrito, ainda que não em detalhe, na Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1.998, nos arts. 5º a 10; essa a principal fonte de direito sobre o contrato de gestão, praticamente a única, considerando-se a inacreditável estupidez que se lê no § 8º, do art. 37, da Constituição Federal, quando o menciona como sendo o contrato entre o poder público e o poder público… devendo ser simplesmente ignorado esse inacreditável dispositivo constitucional.
Diga-se de passo: o Brasil continuará sendo acampamento de ciganos, e não país institucionalizado, enquanto o legislador permitir-se escrever na Constituição Federal insânias como o § 8º, do art. 37.
Afora a lei acima mencionada, foi publicada mais recentemente a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1.999, que dispõe sobre a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado – e não como disse a Constituição no dispositivo citado -, sem fins lucrativos, como organizações sociais.
Assim, se a entidade privada, particular, conseguir, por atender aos requisitos da última lei mencionada, a qualificação de organização social, então poderá celebrar todo e qualquer contrato de gestão, que tenha por objeto a prestação de serviço, com dispensa de licitação, diretamente com o poder público. Bastará para tanto, repita-se para concluir, que a entidade seja, na forma da Lei nº 9.790, de 23 de março de 1.999, uma organização social, e que o contrato de gestão, de serviço, atenda aos requisitos da Lei nº 9.637, de 15 de maio de 1.998.
Ivan Barbosa Rigolin é advogado com vastíssima experiência em direito administrativo, e atuação em outros segmentos do direito e da advocacia e da consultoria. Doze livros publicados, com destaque para o tema dos servidores públicos, das licitações e dos contratos, e das parcerias do poder público. Co-autor de outras quinze obras. Mais de trezentos artigos, publicados além de 1.400 vezes. Ex-professor universitário de direito administrativo. Palestrante, expositor, parecerista e consultor em matérias de direito público.
[1] A nova lei revoga apenas a grandessíssima porcaria que é o minicódigo penal, arts. 89 a 108, da Lei nº 8.666/93, substituindo-a por outra grandessíssima porcaria.
Obras consultadas: Hely Lopes Meirelles, Licitação e Contrato Administrativo, 11ª ed. Malheiros, SP, 1.996; 2. J.C. Mariense Escobar, Licitação – Teoria e Prática, Livraria do Advogado, RGS, 1.993; 3. Marcos Juruena Villela Souto, ed. Esplanada, Licitações e Contratos Administrativos, RJ, 1.993; 4. Américo Servídio, Dispensa de Licitação Pública, ed. RT, SP, 1.979; 5. Sidney Bittencourt, Licitação Passo a Passo, 2ª ed. Lumen Juris, RJ, 1.997; 6. Jessé Torres Pereira Júnior, Comentários à Nova Lei das Licitações Públicas, ed. Renovar, RJ, 1.993; 7. Wolgran Junqueira Ferreira, Licitações e Contratos na Administração Pública, ed. Edipro, SP, 1.994; 8. Ivan Barbosa Rigolin, Manual Prático das Licitações, 2ª ed. Saraiva, SP, 1.998.