Dispensas de licitação em razão do valor no regime da nova Lei de Licitações
- 18 de fevereiro de 2022
- Posted by: Inove
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Foi com a expectativa de uma significativa mudança paradigmática que se esperou pelo novo marco legal das licitações e contratações públicas. Esperava-se que o novo diploma viesse a alterar de forma significativa o cenário da (ainda vigente) Lei 8.666/1993, texto mais preocupado com a forma do que com uma dinâmica criativa, que desse conta de absorver as soluções de mercado em prol da modernização da atividade administrativa.
Outro ponto positivo foi a solução trazida no artigo 191, que permite a coexistência do novo ordenamento jurídico com o anterior durante um período de dois anos, tempo que o administrador poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com o novo diploma ou com as leis do regime antecedente [1], de modo a possibilitar uma boa transição de um sistema legal para o outro, em oposição ao tradicional período de vacatio legis, ao fim do qual a legislação antiga estaria totalmente revogada e a nova totalmente aplicável.
As unidades administrativas poderão aplicar a nova sistemática aos poucos para que, ao cabo do período assinalado, os processos de trabalho estejam satisfatoriamente implantados. Não é por outra razão que há recomendações de que primeiro sejam adotadas as dispensas de licitação calcadas no valor da contratação e depois, procedimentos mais complexos. E estando a decisão no plano de discricionariedade do gestor, é mesmo uma boa ideia. Mas por que não começar pelos instrumentos de planejamento para a diminuição de riscos contingenciais?
Neste texto pretendo demonstrar que a incorporação da nova Lei de Licitações não significa a mera transposição das práticas do conjunto normativo estruturado pela 8.666/93. Em muitos casos, como na adoção das dispensas por valor, sedutora por seus limites maiores [2], serão necessárias abordagens diferentes, ligadas a algo muito falado, mas pouco praticado nas Administrações Públicas Brasil afora: o planejar.
A Lei 14.133/21, ao estatuir em seu artigo 5º os princípios aplicáveis às licitações, alça o planejamento a essa categoria, de modo que sua inobservância pode acarretar na nulidade de todo o procedimento e a responsabilização do agente administrativo pelos eventuais prejuízos ao interesse público, dada sua condição normativa. A densificação desse comando reside em instrumentos que o evidenciem: o estudo técnico preliminar e o plano de contratações anual, sendo o primeiro constitutivo da primeira estapa de planejamento, conciliando o interesse público com a melhor solução a ser concebida no projeto básico ou termo de referência (artigo 6º, XX). O segundo se constrói a partir dos documentos de formalização de demanda, que pretendem racionalizar as contratações; garantir o planejamento estratégico e subsidiar a elaboração do orçamento público (artigo 12, VII, §1º).
O planejamento se torna condição sine qua nom para a deflagração de qualquer procedimento licitatório, na esteira do artigo 18, I, §1º, do novo estatuto licitatório, de modo a possibilitar uma avaliação correta da compatibilização das soluções adotadas em função do interesse público a ser atendido e dos recursos disponíveis [3]. Obviamente, o planejamento não será estático, incapaz de se adaptar a circunstâncias supervenientes, já que sempre será possível ao administrador, em razão da concretude dos casos, incorporar novas soluções e a reprogramação. O que a lei demanda é a existência de um ecossistema em que o planejamento esteja presente em todos os passos decisórios para a realização da aquisição de bens e serviços.
Se as etapas de planejamento são obrigatórias, as dispensas de licitação não poderão ser realizadas sem esse passo anterior, pois é ele que irá antecipar aquilo que poderá ser contratado diretamente nos termos dos incisos I e II do artigo 75 e, assim, evitar o fracionamento ilícito do objeto. Para os acostumados com a dinâmica da Lei 8.666/93, quando as aquisições de determinado bem ou serviço chegavam perto dos limites das dispensas por valor (artigo 24, I e II) realizava-se um certame licitatório e a questão estava resolvida sem maiores dificuldades. Isso mudou.
A dispensa por valor do novo estatuto licitatório não permite a simples transposição da solução costumeira. O §1º do artigo 75 da Lei 14.133/21 estabelece que para fins de aferição dos valores da dispensa deverão ser observados: 1) o somatório do que for despendido no exercício financeiro pela respectiva unidade gestora e; 2) o somatório da despesa realizada com objetos de mesma natureza, entendidos como tais aqueles relativos a contratações do mesmo ramo de atividade.
Assim, para a aferição dos limites de valor, deverá a unidade gestora considerar o que foi (e será) despendido com o bem ou serviço, não deixando margem para a interpretação que se fazia da combinação do artigo 8º e do artigo 23 da Lei 8666/93. O dispositivo legal impede que se considere o valor isolado de determinado bem ou serviço, devendo o gestor avaliar de antemão o valor global das diversas contratações para aplicar os limites tratados nos incisos I e II do artigo 75 da Lei 14.133/21.
A unidade gestora deverá de certa forma antever as contratações por dispensa em razão do valor, ou deixá-la para aqueles casos em que realmente não é possível a previsão no plano anual de contratações. Diferentemente da experiência da Lei 8666/93, se as contratações diretas estiverem perto do limite estabelecido, a realização do certame licitatório para a contratação do mesmo objeto não impedirá o fracionamento ilícito, já que os valores globais anuais já teriam sido ultrapassados: o que se considera é o somatório do que foi despendido no exercício.
Obviamente haverá casos em que, mesmo se adotando um rigoroso planejamento estará o gestor diante de um possível fracionamento, mas isso seria tratado de modo excepcional; seria uma ocorrência superveniente, imprevisível ou de consequências incalculáveis, escapando, portanto, daquela situação ideal do dever de planejar. Afastados estariam o dolo ou a culpa nos termos do artigo 22 da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, que assegura que na interpretação das normas sobre gestão pública serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas que tenham condicionado sua ação. Mas essa solução não abarca aquelas situações em que o planejamento não se deu ou tenha se dado sem a gravidade pretendida pela nova lei. Nessas hipóteses evidencia-se o erro grosseiro.
Leandro Correa de Oliveira é advogado, doutor em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa-RJ), mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), professor dos cursos de graduação, pós-graduação e mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM).
Por essas razões, a sedução da adoção da nova dispensa (e de seus valores maiores comparados aos da Lei 8.666/93), mesmo sendo uma boa estratégia, não pode se dar sem as cautelas necessárias. Se ainda estamos no tempo dado pelo legislador para o aprendizado, sugiro que comecemos a dar mais atenção aos instrumentos de planejamento.
[1] O poder discricionário conferido ao administrador não compreende a aplicação combinada dos regimes para um mesmo procedimento.
[2] Até R$ 108.040,82 para obras e serviços de engenharia ou serviços de manutenção de veículos automotores; até R$ 54.020,41 para contratações que envolvam outros serviços e compras. (Valores válidos a partir de 01/01/2022 em razão do Decreto federal 10.922/2021).
[3] Mesmo a adoção dos critérios de julgamento depende da avaliação extraída do estudo técnico preliminar, como se extrai do artigo 36, §1º da nova lei de licitações.