Evolução histórica da responsabilidade do parecerista na seara sancionadora
- 6 de maio de 2022
- Posted by: Inove
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Na era do “apagão das canetas” — neologismo que exprime o apatismo dos gestores públicos, ocasionado pelo medo da repressão e intransigência que predomina atualmente nos órgãos de controle —, acreditar que o advogado parecerista não entraria na mira dos processos de caráter sancionador seria, no mínimo, ingênuo.
Como se sabe, até pouco tempo antes do julgamento do Mandado de Segurança nº 24.631 [1], no qual o Supremo Tribunal Federal delineou os primeiros critérios para responsabilização do advogado parecerista, era relativamente pacífica a jurisprudência de que o jurista não poderia ser responsabilizado pela sua atuação consultiva.
A ementa do MS nº 24.073, também do STF [2], ilustra muito bem o entendimento da época ao dispor que “o parecer não é ato administrativo, sendo, quando muito, ato de administração consultiva, que visa a informar, elucidar, sugerir providências administrativas a serem estabelecidas nos atos de administração ativa”, motivo pelo qual o advogado não poderia ser responsabilizado. O posicionamento alinhava-se mais literalmente aos ditames do artigo 133 do CRFB/88 e do artigo 32 da Lei nº 8.906/94, fazendo apenas uma tímida menção aos casos de “má-fé”, isto é, de dolo ou erro grave na elaboração do parecer.
Com o agigantamento dos órgãos de controle, que, no início do século, passaram, rapidamente, de coadjuvantes à protagonista na busca pela responsabilização dos agentes públicos pelas falhas de gestão, o entendimento jurisprudencial não chegou a ser alterado, mas foi melhor delineado e passou a ser interpretado com outras cores.
Como mencionado, o MS nº 24.631 representou o início desse aprofundamento na discussão acerca da responsabilidade do advogado parecerista. Na oportunidade, foi traçado um paralelo entre os atos meramente opinativos e aqueles em que a lei exige, como condição de validade do ato, a manifestação favorável no parecer técnico jurídico. Nessa última hipótese, tratando-se de “parecer vinculante”, entendeu-se que “há [veria] efetiva partilha do poder decisório” entre parecerista e gestor, o que aumentaria a responsabilidade do primeiro.
A consequência desses primeiros passos da jurisprudência foi a insegurança jurídica. O início da evolução do entendimento acarretou interpretações diversas, com uma infinidade de tentativas de responsabilização de advogado pareceristas pela simples atuação regular, situação que até hoje ainda pode ser observada. Nesse contexto, ocorreu algo semelhante ao fenômeno citado no início deste texto: o “apagão das canetas”.
Assim como a intransigência dos órgãos de controle trouxe malefícios à atuação dos gestores, também colocou em xeque a atividade dos advogados pareceristas. Ao tentar-se impor uma responsabilidade solidária desses profissionais aos administradores públicos, dois possíveis problemas foram criados: primeiro, parafraseando o nobre ministro Luiz Fux [3], o parecerista poderia passar a ficar receoso de trazer teses inovadoras, transformando-se em um mero burocrata; segundo, isso poderia acarretar na imposição, aos advogados, da função de administrador, o que seria inconcebível.
Esses problemas já eram notados e sopesados antes mesmo de serem expostos no voto do ministro no Mandado de Segurança nº 35.196. Não à toa, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça [4], bem como do Tribunal de Contas da União [5], já vinha indicando a necessidade de demonstração de dolo ou erro grosseiro na atuação do advogado para que pudesse haver sua responsabilização.
De todo modo, o julgamento do MS nº 35.196 pelo Supremo teve sua importância para demonstrar o alinhamento da Corte com as novas diretrizes trazidas pela Lei nº 13.655/18, especialmente do seu artigo 28, que acrescentou à Lei de Introdução ao Direito Brasileiro uma restrição da responsabilização dos agentes públicos aos casos em que presente o dolo ou erro grosseiro. Desse ponto, passou a considerar imprescindível, em qualquer hipótese, seja de parecer opinativo ou vinculativo, ou a demonstração da vontade do parecerista em cometer a irregularidade, ou a culpa grave pela opinião exarada.
A discussão, no entanto, não acabou por aí. Na prática diária, principalmente daqueles voltados à área do direito administrativo sancionador, é comum encontrar diversos processos administrativos disciplinares e ações de improbidade deflagradas em razão de denúncias que, nem mesmo, perpassam o elemento subjetivo do parecerista acusado. Além disso, também é recorrente processos em que o debate recai sobre a extensão do conceito de erro grosseiro, instituto que, apesar das consecutivas tentativas de delimitação, ainda provoca discussões acaloradas.
Dessa perspectiva, percebe-se que o debate acerca da responsabilidade do advogado parecerista está longe de ter um fim. Diversos são os pontos que ainda impõem uma maior reflexão. Contudo, pode-se dizer que algumas premissas básicas já estão suficientemente solidificadas na jurisprudência pátria, o que, apesar de não garantir totalmente o advogado, confere o suporte para assegurar, ao menos minimamente, as garantias constitucionais desse profissional.
Rafael Coelho é advogado administrativista, especialista em Licitações e Contratos pela Escola Mineira de Direito (EMD), ex-membro da Comissão de Estudo da Concorrência e Regulação Econômica da OAB/SC, gestor do núcleo de Direito Administrativo Sancionador do escritório Agacci & Almeida Advocacia Criminal.
[1] STF, Pleno, MS nº 24.631, relator ministro Joaquim Barbosa, j. 09/08/2007.
[2] STF, Pleno, MS nº 24.073, relator ministro Carlos Velloso, j. 06/11/2002.
[3] STF, 1ª Turma, AgReg no MS n. 35.196, relator ministro Luiz Fux, j. 12/11/2019.
[4] STJ, 6ª Turma, HC 461.468, relatora ministra Laurita Vaz j. 09/10/2018 / STJ, 6ª Turma, RHC 46.102, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, j. 25/10/2016.
[5] TCU, Acórdão 13375/2020-Primeira Câmara | relator: BENJAMIN ZYMLER; Boletim de Jurisprudência nº 338 de 14/12/2020.