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Exigência de programas de integridade nos certames licitatórios
- 28 de outubro de 2020
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
A preocupação com a prática de atos de corrupção no Brasil não é recente. Infelizmente, a cultura do Patrimonialismo, do Coronelismo, e do “jeitinho brasileiro”, que em certo grau, ainda persistem no país, tornaram imprescindível a criação de legislações com a finalidade de reprimir e punir práticas contrárias à integridade.
Uma das primeiras legislações nacionais que trouxe essa previsão foi a Lei nº 8.429/1992, que é conhecida como Lei de Improbidade Administrativa. No entanto, o ponto principal deste ato normativo é punir os agentes públicos pela prática de atos de enriquecimento ilícito no exercício do mandato, cargo, emprego ou função, na Administração Direta, Indireta ou Fundacional.
Não havia, até esse momento, grande preocupação com a eventual ocorrência de práticas corruptivas por parte de particulares quando se relacionam com o Poder Público. No entanto, sabe-se que os escândalos de corrupção praticados entre os anos de 2013 e 2014, por grandes empresários e agentes públicos da Petrobras, tornaram imprescindível a edição de normas mais rígidas com o fim de punir tais práticas delituosas.
Utilizando como parâmetro as experiências norte-americanas de combate à corrupção, especialmente por meio de práticas de Compliance, o Brasil editou, em 2013, a Lei 12.846, que ficou conhecida como Lei Anticorrupção. Essa legislação dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira.
O referido ato normativo foi regulamentado, posteriormente, pelo Decreto Federal 8.420/2015, que apresentou de forma mais detalhada, os principais aspectos que devem constar em um programa de integridade, e de que forma este será avaliado, para fins de eventual atenuação de penalidades.
No entanto é importante ressaltar que nem a Lei Anticorrupção tampouco o Decreto Federal nº 8.420/2015 fazem menção à possiblidade da exigência de programa de integridade nos processos de contratação pública. Ademais, frisa-se que tanto a Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/93) quanto à legislação especial em matéria de licitações e contratos administrativos não estabeleceram o compliance como um requisito obrigatório para participação das empresas em certames licitatórios.
Conforme mencionado acima, a Lei Geral de Licitações data de 1993, e já possui 27 anos de existência. Ao longo de todos esses anos, a sociedade se transformou, a tecnologia evoluiu, e as possibilidades de ocorrência de fraudes nas contratações públicas cresceram de forma considerável. Nesse contexto, foi possível identificar diversos aspectos da legislação que precisam ser alterados ou reavaliados. Um dos pontos que merecem atenção é justamente os critérios de habilitação nas licitações.
A Lei nº 8.666/93 estabelece, em seus artigos 27 a 31, um rol taxativo de documentos de habilitação, que poderão ser exigidos daqueles interessados em participar do certame licitatório, que se restringem à habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e trabalhista, e cumprimento do disposto no inciso XXXIII do artigo 7º da Constituição Federal (Declaração de que a empresa não emprega menor de 18 anos, salvo na condição de aprendiz).
Por se tratar de rol taxativo, a apresentação de programa de integridade por parte das empresas que irão participar da licitação, como critério de habilitação, somente poderia ser exigido se a Lei nº 8.666/93 fosse alterada, ou se fosse editada nova legislação, de forma a incluir tal previsão. Há um Projeto de Lei a fim de instituir uma Nova Lei Geral de Licitações (PL nº 163/95, e que recebeu nova numeração mais recentemente: PL nº 6.814/2017), que está tramitando no Congresso Nacional, a fim de adequar diversas questões polêmicas no âmbito das contratações públicas, dentre elas, a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade. A esse respeito, importante citar o disposto no §4º, do artigo 24, da redação do PL nº 163/95:
Art. 25. O edital deverá conter o objeto da licitação e as regras relativas à convocação, ao julgamento, à habilitação, aos recursos e às penalidades da licitação, à fiscalização e à gestão do contrato, à entrega do objeto e às condições de pagamento.
§4º Nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital deverá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses, contado da celebração do contrato, conforme regulamento que disporá sobre as medidas a serem adotadas, a forma de comprovação e as penalidades pelo seu descumprimento.
Nesse sentido, verifica-se que a princípio, o objetivo da Nova Lei Geral de Licitações é incluir a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade apenas do licitante vencedor, nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, no prazo de 06 meses, contado da celebração do contrato.
No entanto, considerando que o Projeto de Lei ainda está em votação, e com o fim de trazer uma hipótese de solução para essa questão, alguns entes da Federação já regulamentaram a matéria. São eles: estado do Rio de Janeiro, Distrito Federal e Mato Grosso. O Paraná, por exemplo, está em vias de apresentar o Projeto de Lei estabelecendo tal previsão[1].
O estado do Rio de Janeiro, por exemplo, editou a Lei Estadual 7.753/2017, que estabelece a exigência do programa de integridade às empresas que celebrarem consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a Administração Pública, cujos limites em valor “sejam superiores ao da modalidade de licitação por concorrência, sendo R$ 1.500.000,00 (um milhão e quinhentos mil reais) para obras e serviços de engenharia e R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) para compras e serviços, mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.” De acordo com o artigo 5º da Lei Estadual 7.753/2017, “a implantação do Programa de Integridade no âmbito da pessoa jurídica dar-se-á no prazo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, a partir da data de celebração do contrato.”
A Lei nº 6.112/2018 do Distrito Federal, por sua vez, estabelece a obrigatoriedade de implementação do programa de integridade em todas as pessoas jurídicas que celebrem contrato, consórcio, convênio, concessão, parceria público-privada e qualquer outro instrumento ou forma de avença similar, inclusive decorrente de contratação direta ou emergencial, pregão eletrônico e dispensa ou inexigibilidade de licitação, com a administração pública direta ou indireta do Distrito Federal em todas as esferas de poder, com valor global igual ou superior a R$ 5.000.000,00. O artigo 5º desta legislação prevê, ainda, que “A exigência do Programa de Integridade dá-se a partir da celebração do contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privada de que trata o art. 1º.”
A Lei Estadual nº 11.123/2020, do estado do Mato Grosso dispõe sobre a obrigatoriedade de exigência do Programa de Integridade às empresas que celebrarem contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado com a Administração Pública direta, indireta e fundacional, cujos limites em valor sejam iguais ou superiores ao da modalidade de licitação por tomada de preços, estimados entre R$ 80.000,00 e R$ 650.000,00 para compras, obras e serviços, mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias. O artigo 5º desse diploma legal também prevê prazo de 180 dias corridos, a partir da celebração do contrato, para a implantação do programa de integridade[2].
Percebe-se que não há uma uniformização nas legislações estaduais no que diz respeito ao valor mínimo da contratação para a exigência de apresentação de programa de integridade por parte das empresas. No entanto, em sua grande maioria, os valores estipulados nos atos normativos são vultuosos. Na prática, essa escolha decorre de uma análise econômica. A implementação de um programa de integridade, sério e adequado, exige um dispêndio financeiro que muitas microempresas e empresas de pequeno porte, que participam de certames com valores estimados de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) à R$ 20.000,00 (vinte mil reais), por exemplo, não têm como suportar. Por essa razão, parece adequada a exigência da implementação de programas de compliance apenas em contrataçõescom valoresmais expressivos,sob pena de inviabilizar a contratação pelo Poder Público de empresas recém constituídas ou com um patrimônio social menos expressivo.
Outro ponto importante que é possível identificar nos atos normativos acima citados é a exigência de programa de integridade apenas e tão somente da empresa que será contratada, e não de todos os licitantes. Conforme já comentado acima, a Lei nº 8.666/93 não estabelece tal exigência como requisito de habilitação. Com o objetivo de respeitar o princípio da legalidade estrita, não ultrapassando o rol taxativo da Lei Geral de Licitações, a única hipótese de previsão de tal obrigatoriedade se dá a partir da celebração do contrato. Em sua maioria, as legislações estaduais preveem um prazo de 180 dias corridos, a partir da celebração do contrato, para que a empresa apresente o programa de integridade instituído.
Outra alternativa apresentada por Fernando Vernalha GUIMARÃES e Érica Miranda dos Santos REQUI, é a consideração do programa de integridade instituído como critério de pontuação das propostas técnicas, e não como critério de habilitação: “Nada impede, contudo, que a comprovação da existência de um programa de integridade possa figurar como critério de pontuação de propostas técnicas, em licitações que funcionam sob critérios de técnica e preço ou melhor técnica. Será perfeitamente admissível que exigências assim possam constar dos editais de licitação, com fundamento no inc. I do §1º do art. 46 da Lei nº 8.666/93[3].”
Complementando o posicionamento acima, Tomas Julio FERREIRA, por sua vez, entende que a criação de certificações tais como o selo “Empresa Pró- Ética”, por parte de entidades governamentais, poderiam ser utilizadas como benefícios nos processos licitatórios, seja como critério de desempate, das margens de preferência ou mesmo utilizando-se da figura do empate ficto:
A exemplo do selo Empresa Pró-Ética, iniciou-se uma movimentação para certificação no Brasil com base na ISO 19600, norma internacional de padronização sobre compliance publicada pela International Organization for Standardization (ISO) e já incorporada ao sistema brasileiro de padronizações pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Outras normas da ISO já foram incorporadas à rotina brasileira de certificações, como a conhecida ISO 9001 sobre gestão de qualidade.
Tais certificações, ou outras a serem criadas por instituições sérias e reconhecidas, principalmente governamentais, poderiam ser utilizadas como benefícios nos processos licitatórios, seja por meio do critério de desempate, das margens de preferência, ou mesmo utilizando-se da figura do empate ficto.
Caso o mecanismo escolhido seja o critério de desempate, seria assegurada a preferência às empresas que tenham o selo de reconhecimento de seu programa de integridade. Outro critério que também poderia ser utilizado para fomentar a adoção do compliance pelas empresas é o empate ficto, método adotado pela legislação federal para incentivar o mercado das micro e pequenas empresas por meio do poder de compra do Estado.
]Mediante essa figura, em caso de empate, seria dada a possibilidade de a empresa portadora do selo apresentar proposta cobrindo aquela que seria vencedora do certame, uma vez que, nesses casos, o conceito de empate compreenderia as situações em que a apresentação de propostas, pelas empresas portadoras do selo, fossem iguais ou até 10% maiores que a proposta melhor classificada, caso siga-se o exemplo do empate ficto concedido às micro e pequenas empresas por força da Lei Complementar n. 123/2006. Esse valor percentual pode variar, a depender da vantagem que se deseje conceder à empresa portadora do selo.
Por fim, outro mecanismo possível é o da margem de preferência, esse bem mais delicado, posto que possibilitaria a contratação de uma empresa portadora do selo mesmo que sua proposta fosse inferior ao de outros colocados. Atualmente as margens de preferências estão previstas na Lei n. 8.666/1993 e são utilizadas para estimular produtos e serviços nacionais[4]. (Sem grifos no original).
De todo o exposto, é possível concluir que muito embora ainda se discuta o momento e a forma mais adequada de apresentação e qual é o limite mínimo estimado da contratação, é inegável a necessidade de previsão nos editais de licitação, da exigência da implementação de programas de integridade e/ou certificações a serem criadas por entidades governamentais, com essa finalidade.
Conforme foi possível identificar da leitura das legislações estaduais citadas, o programa de integridade tem sido exigido apenas da empresa contratada, que terá, em geral, 180 dias corridos a partir da assinatura do contrato, para comprovar a referida implementação. Esse entendimento nos parece adequado, uma vez que não há como se estabelecer a referida exigência como critério de habilitação. Tal situação acabaria por inviabilizar a participação de inúmeros licitantes, uma vez que o processo de implementação de programas de integridade nas empresas é relativamente recente em nosso país. Nem todas as empresas conhecem o que significa implementar um programa de integridade, ou possuem condições financeiras para tanto.
O processo de disseminação da cultura do compliance e da integridade no Brasil está sendo realizado de forma gradual e constante. Isso não significa dizer que não se deve exigir das empresas licitantes a comprovação de condutas éticas e de integridade. É fato notório que um dos maiores índices de corrupção na Administração Pública ocorre nos certames licitatórios. Por essa razão, a exigência de implementação e efetivação de programa de integridade, ao menos da empresa contratada é condição imprescindível para assegurar a boa-fé e a lisura de todo o processo de contratação pública.
Melissa de Cássia Pereira é advogada e consultora jurídica em Licitações e Contratos Administrativos, Mestra em Direitos Fundamentais e Democracia pelo UNIBRASIL e Professora de Direito Ambiental na Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FESP/PR).
[1] De acordo com o artigo 1º do Projeto de Lei que será apresentado: “Fica estabelecida a obrigatoriedade de instituição e Programa de Integridade e Compliance para as pessoas jurídicas que celebrem contrato, consórcio, convênio, concessão ou parceria público-privado, bem como qualquer outro instrumento similar com a administração pública direta, autárquica e fundacional do Estado do Paraná.
§1º: A instituição do Programa de Integridade e Compliance para contratações somente será obrigatória para contratos com valores iguais ou superiores a R$ 10.000,000.00 (dez milhões), mesmo que na forma de pregão eletrônico, e o prazo do contrato seja igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias.
Art. 5º: A implantação do Programa de Integridade e Compliance no âmbito da pessoa jurídica dar-se-á no prazo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, a partir da data da celebração do contrato.
[2] Art. 5º A implantação do Programa de Integridade no âmbito da pessoa jurídica dar-se-á no prazo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, a partir da data de celebração do contrato.
Parágrafo único. Para efetiva implantação do Programa de Integridade, os custos/despesas resultantes correrão à conta da empresa contratada, não cabendo ao órgão contratante o seu ressarcimento.
[3] GUIMARÃES, Fernando Vernalha; REQUI, Érica Miranda dos Santos. Exigência de Programa de Integridade nas Licitações. p. 214. In: Compliance, Gestão de Riscos e Combate à Corrupção – Integridade para o Desenvolvimento. Coord (s): PAULA, Marco Aurélio Borges de; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
[4] FERREIRA, Tomas Julio. Fomento à Integridade: o compliance como exigência nas contratações públicas. p. 279. Revista do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da Unijuí. Ano XXVIII, n. 52 – jul/dez. 2019 – ISSN 2176-6622, Disponível em: <http://dx.doi.org/10.21527/2176-6622.2019.52.267-283> Acesso em: 10/09/2020.