Lei nº 13.303/2016 – Impedimento de participar em torneios licitatórios de Estatais: melhor e mais prestigiada linha interpretativa
- 11 de junho de 2021
- Posted by: Inove
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INTRODUÇÃO
Com a superveniência da Lei nº 13.303/2016, foi instituído um novo regime de contratação pública para as empresas públicas e sociedades de economia mista e de suas subsidiárias. Com isso, inúmeras dúvidas têm surgido acerca das novas regras aplicáveis às contratações de estatais, o que, em larga medida, decorre da tendência muitas vezes equívoca de interpretar a Lei nº 13.303/2016 à luz da principiologia e sistemática da Lei nº 8.666/1993.
O art. 38, inc. III, da Lei nº 13.303/2016
O art. 38, inc. III, da Lei nº 13.303/2016 prevê o seguinte:
‘’Art. 38. Estará impedida de participar de licitações e de ser contratada pela empresa pública ou sociedade de economia mista a empresa:
[…]
III – declarada inidônea pela União, por Estado, pelo Distrito Federal ou pela unidade federativa a que está vinculada a empresa pública ou sociedade de economia mista, enquanto perdurarem os efeitos da sanção; ‘’(Grifamos.)
Na busca da exegese mais correta e adequada a ‘vontade do legislador’ precisamos preliminarmente trazer à baila e enfrentar alguns tópicos essenciais aos deslinde e entendimento dos problemas propostos.
Diante de uma técnica legislativa ambígua e tecnicamente falha, a redação desse dispositivo pode ter basicamente três possíveis interpretações. Vejamos quais são tais linhas e a que consideramos (junto com a boa doutrina) a mais acertada e técnica.
Primeira linha exegética
Uma primeira interpretação extraída do art. 38, inc. III, da Lei nº 13.303/2016 conduz à restrição da participação nas licitações promovidas pelas empresas estatais de forma bem ampla. Esse posicionamento funda-se na ideia de que não houve revogação ou alteração expressa do art. 87, incs. III e IV, da Lei nº 8.666/1993 e do art. 7º da Lei nº 10.520/2002.
Nesse sentido, não haveria fundamento legal apto a afastar os efeitos impeditivos determinados por esses dispositivos, de forma que os particulares sancionados devem sofrer as consequências legalmente delineadas.
Para que haja a perfeita aplicação dessa linha de entendimento, mister que se identifique os efeitos da sanção aplicada ao particular no âmbito da estatal responsável pela licitação, o que requer a compreensão em torno dos seguintes pressupostos ou premissas:
a) A sanção aplicada com base no art. 7º da Lei nº 10.520/2002 tem seus efeitos restritos ao âmbito do ente federativo ao qual se vincula a Administração sancionadora.
b) A sanção aplicada com base no art. 87, inc. III, da Lei nº 8.666/1993 tem, segundo o Tribunal de Contas da União, o efeito restrito ao âmbito do órgão/da entidade que aplicou a sanção. Para o Superior Tribunal de Justiça, essa sanção tem efeito sobre a Administração Pública como um todo. Esta discussão entre o TCU e STJ acerca do alcance de tal penalidade administrativa já tomou contornos épicos e dura décadas. Ao que parece aos poucos a Corte de Contas e o STJ vão chegando a um denominador comum, mas esse é tema de outro artigo.
c) A sanção ‘declaração de inidoneidade’ é aplicada com base no art. 87, inc. IV, da Lei nº 8.666/1993 e tem como objetivo obstar a participação em torneio licitatório e contratação em toda a Administração Pública, abrangendo órgãos/entidades de todos os entes da federação.
Cabe registrar aqui que a lei nº 13.303/2016 não prevê em seu art. 83 (que delimita as modalidades de penalidades aplicáveis pelas estatais) a penalidade de declaração de inidoneidade. O conceito de empresa inidônea ocorre em outros dispositivos da lei nº 13.303/2016 (vide art. 37 e 38) apenas de forma referida, mas como não foi prevista a declaração de inidoneidade como penalidade autônoma pela lei nº 13.303/2016 não pode a mesma ser aplicada em sede de contratos sob a égide da lei das estatais.
Desta forma, seguindo essa primeira linha de interpretação, estariam impedidas de participar dos processos de contratação das estatais as empresas punidas com base no art. 87, incs. III e IV, da Lei nº 8.666/1993 e no art. 7º da Lei nº 10.520/2002.
Cabe aqui observar preliminarmente se as sanções aplicadas com fulcro no inc. III do art. 87 da Lei nº 8.666/1993 e no art. 7º da Lei nº 10.520/2002 podem ser aplicadas em âmbito de estatal. E o fato que torna nítido o descabimento jurídico de tal linha interpretativa é que tais leis são diplomas mutuamente excludentes. A lei nº 13.303/2016 diz expressamente que não se aplica à mesma nem mesmo subsidiariamente as disposições da Lei nº 8.666/1993 e a Lei nº 10.520/2002. E adicionalmente é preciso observar que as sistemáticas das citadas leis são completamente diversas e diferenciadas. Por estes motivos dentre outros entendemos que esta linha de interpretação é falha e atécnica.
Segunda linha exegética
Por sua vez a segunda linha exegética a respeito da disciplina contida no inc. III do art. 38 da Lei nº 13.303/2016, aduz que fica impedida de licitar e contratar com a empresa estatal apenas a licitante que houver sido declarada inidônea pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal.
A declaração de inidoneidade (numa interpretação meramente literal sem observância de outros vetores de interpretação) aplicada por município somente teria aplicabilidade quando a estatal fosse vinculada ao próprio município que aplicou essa sanção.
Mas, tal interpretação não se coaduna e nem se harmoniza com a sistemática, conceito e regime eminentemente privatístico da Lei nº 13.303/2016. Até porque (verbi gratia) uma penalidade aplicada por um dos mais de 5000 municípios existentes no país por si só seria capaz de obstaculizar e restringir as chances das estatais de obter uma contratação mais vantajosa, com melhor preço e que permita uma ampla competitividade.
Não obstante, tal lógica foi incorporada nos Regulamentos da Conab e de muitas estatais em observância ao art. 40 da Lei nº 13.303/2016.
Em suma: de acordo com essa segunda linha exegética, o inc. III do art. 38 refletiria uma opção do legislador em apenas considerar inidônea para contratar com as estatais aquela licitante que assim tenha sido declarada pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, e os efeitos da inidoneidade declarada por município se restringiriam apenas à licitação e à contratação de estatal vinculada ao município sancionador.
Não entendemos que seja uma interpretação técnica por multifacetados motivos:
a) Nega o caráter de ente autônomo e federado ao Município, o que não tem qualquer fulcro ou base constitucional ou legal.
b) interpreta a Lei nº 13.303/2016 sem qualquer eiva de direito privado e não observa a eficácia, ampla concorrência, pragmatismo que é da natureza da lei.
Terceira linha interpretativa
A terceira linha exegética em face do inc. III do art. 38 da Lei nº 13.303/2016 se assemelha à interpretação conferida ao art. 7º da Lei nº 10.520/2002, sem no entanto a invocar ou a legitimar.
De acordo com o art. 7º da Lei nº 10.520/2002, o particular que incorrer nos ilícitos
Art. 7º […] ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Sicaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4º desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais. (Negritos de ora)
Percebamos que o art. 7º da Lei nº 10.520/2002 se vale da conjunção disjuntiva “ou”, tal como se verifica na redação conferida ao inc. III do art. 38 da Lei nº 13.303/2016 (“declarada inidônea pela União, por Estado, pelo Distrito Federal ou pela unidade federativa”), exprimindo a ideia de alternatividade. Ou seja: ficará impedido de licitar e contratar com um OU outro ente federativo.
Ao dispor sobre a sanção do art. 7º da Lei nº 10.520/2002, o TCU, no Acórdão nº 2.242/2013 por seu Pleno, citando o ‘Magister magnus’ Joel de Menezes Niebuhr (2008, p. 300), afirmou que a sanção “prevista no art. 7º da Lei 10.520/02 produz efeitos no âmbito do ente federativo que a aplicar”. Nessa mesma decisão, o TCU segue no mesmo diapasão:
”(…) a jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos do Plenário 739/2013, 1.006/2013 e 1.017/2013) é firme no sentido de que tal penalidade impede o concorrente punido de licitar e contratar apenas no âmbito do ente federativo que aplicou a sanção. (negritos de ora)
Na doutrina referente ao âmbito de incidência da sanção prevista no art. 7º da Lei nº 10.520/2002, Joel de Menezes Niebuhr também adota esse posicionamento, ao aduzir que o legislador, ao disciplinar as sanções administrativas, utilizou a conjunção alternativa ‘ou’, o que significa que o impedimento de contratar abrange apenas ao ente federativo que aplicou a penalidade, sem estender-se aos demais. (NIEBUHR, idem.)
Niebuhr de forma acertada e técnica aduz que essa opção legislativa é resultante do princípio federativo, em que cada ente é dotado de autonomia política e administrativa. Logo, cada ente federativo goza de autonomia para tomar as suas próprias decisões administrativas e, em princípio, não deve ser compelido a aceitar penalidade aplicada por seus pares. (NIEBUHR, idem.)
Logo, valendo-se da mesma lógica e fundamento jurídico, a Lei nº 13.303/2016 ao utilizar a expressão disjuntiva ”’ou” teria feito a opção de restringir o impedimento de participar nas licitações apenas às empresas que houvessem sido declaradas inidôneas no âmbito do ente ao qual a estatal contratante está vinculada.
Essa interpretação tem como objetivo mais forte assegurar a autonomia e a independência das estatais para atuar em regime de igualdade no mercado privado e entendemos ser a mais correta e técnica ao se harmonizar com a sistemática da Lei nº 13.303/2016. E adicionalmente atende de forma plena a literalidade do dispositivo (inciso III do art. 38).
Certamente o legislador quis excluir a possibilidade de a punição aplicada por um ente político atingir contratações de empresa estatal vinculada a outros, visto que o art. 38, III, é expresso em vincular a eficácia da inidoneidade ou da suspensão a de ter sido editada pelo ente político a que a estatal se subordina. Os Regulamentos de licitação e contratação da Caixa Econômica Federal e do Banco do Brasil refletem essa terceira linha de entendimento que é a mais aceita pela boa doutrina e Cortes de contas e a qual nos filiamos.
Célio Nunes Leite é consultor em licitação/contratação Administrativa, advogado da CHESF\ELETROBRAS. Especialista em Direito Público pela Faculdade Mauricio de Nassau. Artigos publicados nos mais prestigiados periódicos e sites de direito público.
REFERÊNCIAS:
NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão presencial e eletrônico. 5. ed. Curitiba: Zênite, 2008.