O erro grosseiro e a responsabilização administrativa e financeira do agente público
- 11 de agosto de 2023
- Posted by: Inove
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A Lei n° 13.655/2018 acrescentou novos dispositivos (dos artigos 20 a 30) ao Decreto-Lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), com o propósito declarado no seu preâmbulo de conferir maior segurança jurídica nas relações entre Estado e sociedade e eficiência na criação e na aplicação do direito público.
Este texto oferece uma reflexão sobre a adequação constitucional do artigo 28 da Lindb, em especial a sua compatibilidade com o disposto no artigo 37, § 6º, da CF/1988. Outrossim, discute a intepretação que tem prevalecido na jurisprudência do TCU acerca da incidência do erro grosseiro no âmbito da responsabilização administrativa e financeira do agente público.
Eis o que dispõe o artigo 28 da Lindb: “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro” [1]. Toma-se aqui o conceito de erro grosseiro já tantas vezes mencionado pela jurisprudência do TCU, no sentido de equipará-lo à culpa grave, ou seja, que resulta de grave inobservância do dever de cuidado e zelo com a coisa pública [2].
Veja-se, portanto, que o referido dispositivo praticamente inaugura um novo regime de responsabilização ao prescrever que o agente público responderá por suas decisões em caso de dolo ou erro grosseiro. De acordo com a lição de Gustavo Binenbojm e André Cyrino, “o erro grosseiro é um código dogmático que exprime como a culpa deve ser valorada para que o agente público possa ser responsabilizado” [3]. Dessa forma, a valoração da culpa, em cuja faixa de gradação se encontra o erro grosseiro, passa a assumir papel decisivo na imputação de responsabilidade do gestor.
Conforme a jurisprudência consolidada do TCU, a análise da presença do erro grosseiro na conduta do gestor apenas seria cabível nos casos em que se apuram irregularidades que podem resultar na aplicação de sanções (multa e inabilitação para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, por exemplo). Significa dizer, portanto, que tal apuração, em que se investiga a gradação da culpa, com o fim de verificar a presença ou não da culpa grave, não terá lugar quando a ocorrência recair sobre a responsabilização financeira do agente. Foi o que decidiu o TCU no Acórdão 2391/2018-TCU-Plenário [4], da relatoria do Ministro Benjamin Zymler, cujo excerto do voto condutor ao acórdão evidencia os argumentos para negar a aplicação do artigo 28 da Lindb à responsabilização financeira por prejuízo ao erário, in verbis (grifamos):
146. Isso ocorre porque as alterações promovidas na LINDB, em especial no art. 28, não provocaram uma modificação nos requisitos necessários para a responsabilidade financeira por débito.
147. O dever de indenizar os prejuízos ao erário permanece sujeito à comprovação de dolo ou culpa, sem qualquer gradação, como é de praxe no âmbito da responsabilidade aquiliana, inclusive para fins de regresso à administração pública, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição:
“6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Desse modo, o TCU reconhece a existência de duas espécies de responsabilidade para os agentes públicos. Uma, de viés punitivo, que deve ser utilizada na aplicação de sanções, exigindo o dolo ou o erro grosseiro – responsabilização administrativa; e a outra, de viés ressarcitório, que não seria alcançada pelo conceito de erro grosseiro, sendo disciplinada pelo artigo 37, § 6º da CF/1988, exigindo apenas o dolo ou culpa simples [5] – responsabilização financeira. Vale dizer, no exercício da atividade controladora, a análise do erro grosseiro fica reservada apenas à aplicação de sanções, não se estendo à responsabilização por danos causados ao erário, que continua regida pelo direito civil, no âmbito da responsabilidade extracontratual por ato ilícito.
A despeito de o Acórdão 2391/2018-TCU-Plenário já ter sido citado como referência em diversos julgados da Corte de Contas, entende-se que a tese ali firmada deveria ser revisitada, a fim de que a avaliação do erro grosseiro (ou culpa grave) seja uma exigência tanto para a imposição de sanções administrativas quanto para a condenação ao ressarcimento por prejuízo ao erário. Portanto, depois de mais de quatro anos das alterações promovidas na Lindb, já haveria condições para o TCU superar a sua jurisprudência [6], fundada na legislação civil, a qual, em regra, não faz distinção entre os graus de culpa para efeito de reparação do dano, ou seja, tenha o agente atuado com culpa grave, leve ou levíssima, se há culpa, haverá o dever de indenizar.
Como visto, o fundamento sobre o qual foi erigida a jurisprudência do TCU repousa na literalidade do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, na medida em que o texto constitucional não faz qualquer exigência adicional, além da comprovação do dolo ou da culpa, para que o Estado exerça seu direito de regresso contra agente público causador de um dano a terceiro. Portanto, a limitação contida no artigo 28 da Lindb, segundo a qual o agente público somente responderá em caso de dolo ou erro grosseiro, ofenderia o § 6º do art. 37 da CF/1988, pois não requer a Lei Maior que a conduta tenha revelado erro grosseiro, basta a culpa.
Além disso, segundo recomenda a regra de hermenêutica, “não pode o intérprete restringir onde a lei não restringe”. Assim, nessa linha de raciocínio, a aplicação do artigo 28 da Lindb reduziria as possíveis gradações da “culpa” a que alude o artigo 37, § 6º, da CF/1988, apenas à espécie culpa grave, restrição esta que não encontraria arrimo na Constituição.
No entanto, a exigência criada pelo artigo 28 da Lindb, no sentido de que a culpa precisa ser qualificada como “erro grosseiro”, para fins de responsabilização financeira do agente público, reclama uma incursão sobre o propósito teleológico contido no § 6º do art. 37 da CF/1988, de modo a evidenciar um vetor hermenêutico mais justo e razoável para acomodar o erro grosseiro ao texto constitucional [7]. Explica-se.
De acordo com o ensinamento da doutrina, o comando constitucional em foco consagrou a responsabilidade extracontratual objetiva do Estado, fundada na teoria do risco administrativo. Por essa teoria, há o reconhecimento de que a atividade exercida pelo Estado, mediante suas múltiplas formas de intervenção na realidade social, muito embora seja orientada à consecução dos interesses da coletividade como um todo, é potencialmente geradora de riscos de danos aos administrados que também se beneficiam das políticas públicas proporcionadas pela ação estatal.
Como consequência, não seria socialmente justo que somente a parcela da comunidade que efetivamente experimentou o prejuízo resultante da atividade estatal – repisa-se, que é geradora de riscos em prol de todos, ainda tivesse que suportar o ônus que acompanha a comprovação da culpa na responsabilidade subjetiva, o que poderia dificultar sobremaneira a reparação integral do prejuízo sofrido pela vítima. Não por outra razão assevera-se que, na fixação da responsabilidade objetiva do Estado, haveria um forte componente de solidariedade social, pois todos os membros da coletividade são chamados a concorrer para a recomposição do dano, pela via do orçamento público, facilitando a indenização à vítima que fica dispensada de demonstrar a culpa [8].
Se isso é verdadeiro, não parece estar alinhado ao espírito de igualdade e de socialização dos riscos administrativos, nos quais se fundamenta a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da CF/1988, a compreensão de que o agente público possa vir a ser responsabilizado pessoalmente pelo dano que causou a terceiros, quando estiver atuado no interesse do serviço e com culpa levíssima. Não seria razoável inferir que a Constituição Federal, de um lado, facilitou o ressarcimento de quem sofre prejuízos decorrentes da atividade estatal, ao desobrigá-lo da comprovação da culpa e, de outro, permitiu que o dano como materialização dos riscos seja integralmente absorvido pelo agente público cuja atuação em nome do Estado, apesar de ter dado causa ao dano – porque agiu com culpa levíssima, não evidencia qualquer violação ao dever de cuidado objetivo que dele se esperava, considerando o referencial do administrador médio [9].
O administrador médio em questão é o agente que deixa de adotar um dever de cuidado objetivo que se esperaria da média de seus pares, expostos às mesmas circunstâncias, o que não pode ser encarado como um erro de conduta justificável, razão por que deverá responder pelos seus atos, nos termos do que se decidiu no Acórdão 2.012/2022-TCU-2ª Câmara, Relator: Antônio Anastasia [10].
Dito de outro modo, parece não guardar proporcionalidade a interpretação que, ao tempo em que acolhe a justiça distributiva operada pelo art. 37, § 6º, da CF/1988, não é tolerante com o erro do agente que, no exercício de suas funções, atuou conforme a média de seus pares – por isso incorreu em erro desculpável, exigindo-se dele um dever de diligência acima do normal, extraordinário, pois, só assim, conseguiria se eximir de reparar o dano que causou a terceiros, via ação regressiva do poder público, ainda que sua culpa seja levíssima.
Por tudo que foi dito, considera-se que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal, por meio do qual se assegura o direito de regresso do Estado contra o agente nos casos de dolo ou culpa, não teria o condão de afastar o art. 28 da Lindb, no que se refere à aplicação do erro grosseiro à pretensão de ressarcimento de dano ao erário a cargo dos tribunais de contas, ainda que o exercício do Controle Externo não decorra de uma ação regressiva, eis que o referencial do administrador médio, para fins de responsabilização do agente público, de que cuida o Acórdão 2012/2022-TCU-Segunda Câmara, Relator: Antônio Anastasia, coaduna-se com a concepção de partilha dos riscos administrativos.
Assim, o desdobramento mais consentâneo com os fundamentos da Lei n° 13.655/2018, alinhado, aliás, com a deferência que o TCU já vem mostrando à norma em suas deliberações, seria no sentido de que o Tribunal incorporasse a análise do erro grosseiro irrestritamente ao processo de responsabilização de agentes públicos, seja para aplicar sanções ou condenar em débito.
Sandro Rafael Matheus Pereira é auditor e diretor de Secretaria do Tribunal de Contas da União (TCU), mestrando em Direto, professor, advogado e economista.
[1] Convém mencionar que a Lei 13.655/2018 foi regulamentada pelo Decreto 9.830/2019, cujo art. 12, §1º, se propõe a conceituar “erro grosseiro” como “aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.
[2] Nesse sentido: Acórdão 2391/2018-Plenário, Relator: Min. Benjamin Zymler, Acórdão 2.924/2018-Plenário, Relator: Min. José Mucio Monteiro, Acórdão 11.762/2018-2ª Câmara, Relator: Min. Marcos Bemquerer e Acórdãos 957/2019, 1.264/2019 e 1.689/2019, todos do Plenário, tendo como Relator o Min. Augusto Nardes, entre outros.
[3] BINENBOJM, Gustavo; CYRINO, André. O art. 28 da LINDB – A cláusula geral do erro administrativo. Revista Direito Administrativo, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro – LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, nov. 2018.
[4] Tal posicionamento foi recentemente reafirmado com a prolação do Acórdão 1958/2022-TCU-Plenário, Relator: Benjamin Zymler.
[5] FERRAZ, Luciano. Alteração na Lindb e seus reflexos sobre a responsabilidade dos agentes públicos. ConJur. São Paulo, 29 nov. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-nov-29/interesse-publico-lindb-questao-erro-grosseiro-decisao-tcu. Acessado em 5/5/2022.
[6] Entendendo que a responsabilidade dos gestores públicos perante o TCU segue a regra geral da responsabilidade prevista no direito civil: Acórdão 18957/2021-TCU-Segunda Câmara, Rel. Aroldo Cedraz, Acórdão 18333/2021-TCU-Primeira Câmara, Rel. André de Carvalho e Acórdão 4485/2020-TCU-Primeira Câmara, Rel. Benjamin Zymler, entre outros.
[7] Esclareça-se que este texto está centrado na discussão do assunto no plano constitucional. Contudo, não se desconhece a existência de outros argumentos na defesa na presunção de compatibilidade do artigo 28 da Lindb com a Constituição. Por exemplo, cabe assinalar que existem categorias de agentes estatais em que a norma infraconstitucional estipulou um regime de responsabilização ainda mais restritivo do que aquele do art. 28 da Lindb, prevendo que tais agentes apenas responderão, civil e regressivamente, quando agirem com dolo ou fraude no exercício de suas funções, sem sequer mencionar a modalidade culposa. É o que estabelece, por exemplo, a Lei 13.105/2015 (Código de Processo Civil), ao dispor sobre a responsabilidade pessoal dos magistrados (art. 143), dos integrantes do Ministério Público (art. 181), Advocacia Pública (art. 184) e Defensoria Pública (art. 187). Ainda que se leve em consideração as especificidades do regime jurídico de cada categoria de agentes públicos, fato é que tal norma até hoje não teve a inconstitucionalidade declarada pelo Supremo Tribunal Federal, o que miliar a favor da presunção de constitucionalidade do art. 28 da LINDB.
[8] Na lição de Hely Lopes Meirelles, “Tal teoria [do risco administrativo], como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Para compensar essa desigualdade individual, criada pela própria Administração, todos os outros componentes da coletividade devem concorrer para a reparação do dano, através do erário, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz a mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no artigo 194, da Constituição Federal de 1946”. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. Malheiros Editores, 2003, p. 623-624.
[9] A interpretação que ora se propõe vai ao encontro da “teoria da dupla garantia” encetada pelo Supremo Tribunal Federal, ao interpretar o § 6º do art. 37 da Constituição Federal, no sentido de que o aludido dispositivo consagraria uma dupla garantia: “(…) uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular (RE 327904, CARLOS BRITTO, STF).
[10] Para informações mais detalhadas sobre a figura do administrador médio na jurisprudência do TCU, recomenda-se o artigo “A aplicação do erro grosseiro na jurisprudência do TCU”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jul-09/matheus-pereira-erro-grosseiro-jurisprudencia-tcu. Acesso em 10/7/2022.