O Estudo Técnico Preliminar
- 9 de dezembro de 2020
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
O Decreto federal nº 10.024/2019, ao regulamentar o pregão eletrônico, deu ênfase à tendência de se consumir mais energias na fase de planejamento, ao tratar sobre necessidade de confecção do estudo técnico preliminar, que é um documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação, caracterizando o interesse público envolvido e a melhor solução ao problema a ser resolvido e que, na hipótese de conclusão pela viabilidade da contratação, fundamenta o termo de referência.
Tal regramento indica a escorreita preocupação com a fase de planejamento, a qual, quando bem realizada, evita prejuízos advindos de uma concepção precipitada e equivocada da pretensão contratual. Por outro lado, importa ressaltar: o Decreto estabelece que esta confecção deve ser feita quando necessária, o que pressupõe a análise de que nem sempre será eficiente a confecção do instrumento, previamente ao termo de referência.
Esta relativização da obrigatoriedade definida pelo Decreto foi uma disposição deveras interessante, pois, em princípio, abre uma oportunidade técnico-discricionária para que esse documento prévio seja confeccionado apenas quando necessário, evitando estudos técnicos preliminares meramente formais, que a pretexto de cumprirem uma regra burocrática, simplesmente repetem textos pré-formatados, sem a pertinente reflexão sobre a pretensão contratual, fundamental para uma boa definição do objeto licitatório.
Mas quando essa necessidade seria identificada?
Numa perspectiva funcional, parece importante compreender que o objetivo do ETP é agregar novos elementos de planejamento, avaliando, entre outras coisas: as soluções disponíveis no mercado para o atendimento da pretensão contratual, eventuais requisitos necessários à contratação, ponderações sobre a modelagem contratual (como em relação ao parcelamento ou não da solução, contratação com ou sem dedicação exclusiva de mão de obra), entre outros. Em apertada síntese, a função precípua do ETP parece ser a de refletir sobre a contratação, avaliar as opções disponíveis e as nuances pertinentes a fim de que a alternativa escolhida para atendimento da necessidade administrativa seja a melhor possível para o bom atendimento do interesse público.
Assim, por exemplo, quando um órgão possui uma necessidade de transporte de seus colaboradores, ele deve refletir e definir a demanda administrativa a ser atendida por um terceiro contratado (pretensão contratual), uma vez que o mercado oferece diversas soluções para atendimento dessa demanda, como a contratação de uma empresa terceirizada de transporte, a aquisição de veículos, a locação de veículo, o uso de aplicativos, entre outros. Da mesma forma, em licitações para aquisição de equipamentos, antes da confecção do termo de referência, deve ser avaliada a potencial existência no mercado de diferentes modelos para o atendimento da necessidade administrativa.
Uma vez escolhida a solução adequada, ter-se-á a base para o termo de referência, documento que esmiuçará e formalizará a descrição da pretensão contratual.
Em suma, a função do ETP é gerar reflexão prévia à definição do objeto licitatório, notadamente em relação às soluções disponíveis e questões técnicas pertinentes, para fins de melhor atendimento da pretensão contratual. Ele deve evidenciar o problema a ser resolvido e a melhor solução dentre as possíveis, de modo a permitir a avaliação da viabilidade técnica, socioeconômica e ambiental da contratação, sendo importante que ele seja elaborado conjuntamente por servidores da área técnica e requisitante ou, quando houver, pela equipe de planejamento da contratação. A integração desses setores pode auxiliar a identificar melhores soluções para o atendimento da pretensão contratual.
Mais recentemente, houve a publicação da Instrução Normativa nº 40/2020, que dispôs sobre a elaboração dos Estudos Técnicos Preliminares (ETP) e do ETP Digital. O Sistema ETP digital constitui uma interessante ferramenta informatizada, disponibilizada pela Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, no Portal de Compras do Governo Federal, para elaboração dos ETP.
De acordo com o art. 8º da referida IN 40/2020, a elaboração do ETP é facultativa nas hipóteses dos incisos I, II, III, IV e XI do art. 24 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993; e é dispensada nos casos de prorrogações contratuais relativas a objetos de prestação de natureza continuada.
Uma questão relevante envolve indagar se há caráter exemplificativo ou exaustivo nas hipóteses de facultatividade indicadas pelo normativo.
Uma primeira opção interpretativa é entender que esse elenco é exaustivo e que em todas as outras pretensões contratuais seria obrigatória confecção do ETP. Nesta linha de interpretação, a Instrução Normativa, ao menos para quem a ela está submetido, teria restringido o juízo técnico e discricionário, definindo previamente quando o ETP não seria necessário.
Defendemos interpretação diferente, que prestigia a adequada regra do regulamento federal, posicionando-se por um caráter exemplificativo das hipóteses previstas na já citada Instrução Normativa. Isso porque o mais importante parece ser resguardar a função do ETP. É fundamental a sua utilização funcional, representada por uma melhor reflexão para a definição da pretensão contratual, quando necessária.
Em uma licitação rotineira, despida de complexidade e com valor reduzido (embora superior ao limite para utilização da hipótese de dispensa prevista nos incisos I e II do art. 24 da Lei nº 8.666, de 1993), pode não ser economicamente eficiente constituir uma equipe de planejamento ou reunir diversos agentes para a elaboração de um Estudo Técnico Preliminar, mesmo que não identificada qualquer das hipóteses de ressalva previstas na IN 40/2020. Por outro lado, mesmo em uma hipótese de dispensa emergencial, diante de incertezas e de diferentes soluções existentes no mercado, quando há tempo disponível, uma maior reflexão, prévia à definição da pretensão contratual, bem como a análise de riscos, pode ser fundamental para evitar prejuízos ao interesse público, mesmo que isso atrase em alguns poucos dias a contratação.
A realidade é dinâmica e exige que a interpretação de nossos normativos não impeça a inovação e a adaptabilidade do agente público tomador de decisão.
Por outro lado, a adoção do ETP digital terá o condão de permitir um maior controle gerencial das demandas administrativas, aperfeiçoando a compreensão dos órgãos de gestão sobre nossas demandas e eventuais deficiências. Com o uso de inteligência artificial, o próprio custo transacional para a confecção do ETP será reduzido e as eventuais deficiências técnicas dos agentes responsáveis pela sua confecção mitigadas pela indução de modelos eficientes, balizas já testadas em contratações anteriores e conectadas com outras demandas administrativas contemporâneas. A própria indução a contratações sustentáveis poderá ser mais eficazmente cumprida pela indução do sistema e a definição de sugestões de modelos, soluções e especificações lastreadas nas informações alimentadas pelo sistema.
Algumas exigências previstas na IN precisam ser temperadas com boa interpretação. Diante de diversas soluções existentes no mercado, uma estimativa de custos mais detalhada parece ser necessária, apenas, após a definição da solução (o que não impede uma aferição prévia, com menor detalhe, até para lastrear a escolha da solução). Outrossim, uma vez realizada essa estimativa de custos mais detalhada, é possível que ela seja aproveitada quando da confecção do termo de referência, evitando “retrabalho” desnecessário.
Por fim, convém ressaltar que as contratações públicas estão avançando para um momento interessante, com enormes ganhos para a eficiência do planejamento, sobretudo pela adoção de interessantes ferramentas tecnológicas. Este novo momento, contudo, exige aprimoramento e capacitação de nossos agentes públicos, para acompanharem as mudanças e também para desenvolverem capacidade resolutiva e uma compreensão funcional sobre as novas regras postas.
Ronny Charles L. de Torres é Advogado da União. Doutorando em Direito do Estado pela UFPE. Mestre em Direito Econômico pela UFPB. Pós-graduado em Direito tributário (IDP). Pós-graduado em Ciências Jurídicas (UNP). Membro da Câmara Nacional de licitações e contratos da Consultoria Geral da União. Autor de diversos livros jurídicos, entre eles: Leis de licitações públicas comentadas (10ª Edição. Ed. Jus Podivm); Direito Administrativo (Coautor. 10ª Edição. Ed. Jus Podivm); RDC: Regime Diferenciado de Contratações (Coautor. Ed. Jus Podivm); Terceiro Setor: entre a liberdade e o controle (Ed. Jus Podivm); Licitações e contratos nas empresas estatais (Coautor. Ed. Jus Podivm); Direito Provisório e a emergência do coronavírus (Coautor. Ed. Fórum); Improbidade administrativa (Coautor. 4ª edição. Ed. Jus Podivm).