Os acórdãos do Tribunal de Contas da União têm caráter normativo?
- 28 de novembro de 2019
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
O protagonismo da côrte superior de contas do Brasil como indutora de melhorias na gestão pública, tem conferido ao Tribunal de Contas da União (TCU) um status de destaque perante a sociedade, administradores públicos e demais atores direta ou indiretamente envolvidos com o tema gestão pública. Tal proeminência atrai a atenção da sociedade, da mídia, dos compradores públicos, dos demais órgãos controladores etc, resultando normalmente na adoção das decisões do TCU como boa prática ou referencial de conduta, dada a elevada qualidade de suas análises nos casos concretos julgados.
No entanto, visando evitar a aplicação equivocada ou mesmo indevida de tais decisões, faz-se necessário analisar em quais casos uma decisão do TCU tem caráter obrigacional e qual seria a abrangência de tal efeito. Tal análise torna-se mais necessária ainda diante da possibilidade de responsabilização pessoal do agente público em casos de erro grosseiro. Sendo que o injustificado descumprimento de ato de caráter normativo pode caracterizar negligência, imprudência ou imperícia, possibilitando a responsabilização.
Já de antemão, frise-se que a decisão proferida pelo TCU diretamente para o órgão ou agente público, possui caráter obrigacional e o seu descumprimento pode resultar em responsabilização. Mas a abrangência de tal decisão normalmente se restringe ao órgão ou agente público para o qual foi proferida, não surtindo efeitos perante terceiros não relacionados ao caso concreto julgado.
Analisemos a seguir outros detalhes importantes acerca das decisões do TCU.
Observe-se que, em 13 de dezembro de 1994, o TCU proferiu a Decisão nº 759, prevendo que as decisões do TCU que tratem de norma geral de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas no âmbito dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Decorrente de tal decisão, foi editada a Súmula nº 222, cuja interpretação ao longo do tempo tem sido relativamente controversa.
SÚMULA TCU 222: As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
Em primeiro lugar, porque o fundamento da referida Decisão são as normas constitucionais que fixam a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitação, bem como os princípios que regem a Administração Pública em geral, a obrigação de licitar e as competências do TCU para julgar, apreciar, fiscalizar as contas e demais atribuições que lhe são típicas. A referida Súmula tem ainda por fundamento legal a Lei Orgânica do TCU (LOTCU), que fixa a jurisdição própria e privativa do TCU sobre pessoas e matérias sujeitas à sua competência. A decisão considerou ainda o que fixa a Lei de Licitações e Contratos (LLC) acerca da subordinação ao regime nela instituído.
Decorrente de tal fundamentação jurídica, não é incomum que o administrador público conclua que toda e qualquer decisão do TCU atraia a aplicação da Súmula 222. Ou seja, que qualquer decisão proferida pelo TCU tem caráter normativo e que deve ser seguida por todos os órgãos e instituições, de todas as esferas e poderes. No entanto, tal raciocínio é pelo menos parcialmente equivocado, como se pretende demonstrar ao longo do presente texto.
E em segundo lugar, porque algumas decisões do TCU têm apontado como irregular o ato administrativo que “fere” ou “afronta” decisões do TCU com base em casos concretos. Criando o que poderíamos chamar de “cultura do acórdão”, em que o gestor adota automaticamente as decisões do TCU, mesmo que o caso concreto julgado não seja exatamente igual ao do órgão ou pelo menos similar, para que possa servir como boa prática ou referencial de conduta. Tal terminologia ocorre com relativa frequência nas decisões recentes do TCU, como se pode verificar nos dois exemplos abaixo.
Acórdão 2474/2019 Plenário – “viola… a Súmula TCU 263”
Acórdão 2037/2019 Plenário – “afronta o disposto na Súmula TCU 269 (Acórdão 916/2015-Plenário, item 9.1.6.8)”
Tal caracterização do ato administrativo como irregular, pelo simples fato da decisão do gestor não se amoldar ao que consta de decisão anterior do TCU, não me parece coadunar com o que fixa a própria Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992 (LOTCU), que confere caráter normativo somente às respostas a consultas formuladas pelas autoridades competentes para tal. Isto porque tal resposta constitui prejulgado da tese, mas não do fato ou caso concreto.
LOTCU, Art. 1º, §2° A resposta à consulta a que se refere o inciso XVII deste artigo tem caráter normativo e constitui prejulgamento da tese, mas não do fato ou caso concreto.
Em resposta a uma pergunta que fiz há pouco mais de um ano atrás, sobre o motivo de tanta gente adotar acórdãos como norma, o próprio Ministro Benjamim Zymler, do TCU, asseverou que “é importante dizer que cada decisão do tribunal leva em conta circunstâncias do fato concreto, que não se aplicam necessariamente a uma outra situação, com outras circunstâncias“, indicando que mesmo o uso do acórdão como boa prática ou referência de conduta, precisa considerar a similitude do caso concreto julgado. A preocupação e até mesmo o espanto surgem quando ocorre a “transposição ilimitada, de forma indutiva, de uma decisão circunstancial a diversos casos concretos“. Tal situação, segundo o Ministro, resulta no temor de que “essa universalização, e transcendência das nossas decisões possa ter um efeito final maléfico, que é o engessamento da Administração a uma moldura que não é adequada“.
Naquela ocasião, o Advogado da União e professor Ronny Charles alertou que, nos cursos de capacitação percebemos que “os pregoeiros ficam aflitos e ávidos por conhecer novas decisões jurisprudenciais“, já que “uma jurisprudência construída através de situações concretas, casuísticas, acaba sendo percebida, pelos pregoeiros, gestores e assessorias jurídicas, como se fosse um dogma“. Segundo o professor Ronny Charles, isto ocorre, dentre outras coisas, devido ao “medo que foi gerado, a preocupação dos gestores e dos pregoeiros com uma eventual punição“. Alerta o nobre professor que, infelizmente “estamos construindo um ambiente de responsabilização subjetiva dentro da Administração Pública e isso é um absurdo“. E conclui que a jurisprudência do TCU “deve ser percebida como uma boa orientação, mas não deve ser aceita como um dogma“.
O jurista e professor Joel Menezes Nieburh também respondeu àquela pergunta que fiz. Com uma opinião bastante crítica em relação ao papel do TCU e de todos os tribunais, asseverou, dentre outras coisas, que “muita gente é acusada, não porque agiu de má fé, mas porque pura e simplesmente tentou algo e deu errado. Ou porque adotou uma posição divergente do órgão de controle“.
Assim, penso ser de extrema importância avançarmos na presente discussão, visando tanto aproveitar o ótimo trabalho de melhoria da gestão realizado pelo TCU, como indutor de inovação, como também evitar a distorção na aplicação das decisões daquela corte, em prejuízo à boa gestão e a efetividade das políticas públicas, as quais os administradores públicos são os legítimos detentores da responsabilidade de fazer funcionar.
Ressalto, por fim, que em relação às súmulas do TCU, as mesmas constituem verbetes que resumem um conjunto de decisões reiteradas no mesmo sentido. O STF, inclusive, ao analisar ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra os Acórdãos 2.780/2016, 1.879/2014, 892/2012 e a Súmula 285, todos do Tribunal de Constas da União, denegou o pedido por falta do preenchimento do requisito obrigatório da ADI, qual seja o de que o controle de constitucionalidade se dê em relação a lei ou ato normativo.
Os acórdãos proferidos pelo TCU não constituem norma, mas atos concretos. A súmula do TCU é mero verbete que consolida o entendimento do tribunal, desprovido de eficácia normativa.
E no seu órgão, como são analisadas as decisões do TCU e como elas são ou não incorporadas como base para a tomada de decisão?
Ronaldo Corrêa – Graduado em Logística e foi aluno do Mestrado Profissional em Administração Pública (Profiap) na Universidade Federal de Sergipe (UFS). Atuou desde 2007 em diversas funções técnicas e gerenciais, como chefe do Setor de Administração e Logística (SELOG), pregoeiro e Coordenador de Licitações (COLIC), na Polícia Federal (PF) e Controladoria-Geral da União (CGU). É docente do Programa de Gestão da Logística Pública da Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Atua como instrutor de cursos de capacitação em escolas de governo, órgãos públicos e instituições privadas. Foi integrante da delegação brasileira no study tour realizado aos Estados Unidos da América em 2018, no âmbito da Global Procurement Initiative (GPI), realizada pela U.S. Trade na Development Agency (USTDA em parceira com o então Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPOG), atual Ministério da Economia (ME).
Referências:
Art. 28 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro
Art. 12 do Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019 (Regulamento da Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro)
Decisão TCU nº 759, de 13 de dezembro de 1994 (Súmula 222)
Art. 1º, §2º e Art. 4º da Lei nº 8.443, de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União)
Portal Sollicita – Sessão O Divã de 27 de agosto de 2018 (Acórdãos não são normas)