Reflexões sobre a cláusula de retomada na nova Lei de Licitações
- 19 de agosto de 2022
- Posted by: Inove
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A função precípua das garantias contratuais é assegurar o cumprimento das obrigações contratualmente previstas. Nos contratos públicos não é diferente, de forma que as garantias previstas na Lei nº 14.133/2021, a nova Lei de Licitações, se prestam a cumprir uma função semelhante àquela exercida em qualquer outro negócio jurídico: assegurar que as obrigações pactuadas sejam cumpridas mesmo em caso de inadimplemento de uma das partes. Não se trata, porém, de um mecanismo a ser acionado pelo Poder Público quando bem entender. Como afirma Marçal Justen Filho, “[…] a garantia apenas adquirirá alguma utilidade para o acredor na hipótese de o devedor deixar de adimplir espontaneamente seus débitos” [1].
Nos termos do artigo 96 da Lei nº 14.133/2021, pode a Administração exigir, mediante previsão no edital, prestação de garantia nas contratações de obras, serviços e fornecimentos. Trata-se, pois, via de regra, de uma faculdade. Pode a Administração requerer a oferta de garantia ou não. Em sendo o caso, cabe ao contratado optar por prestar a garantia fazendo uso das seguintes modalidades: a) caução em dinheiro ou em títulos da dívida pública; b) seguro-garantia; c) fiança bancária emitida por banco ou instituição financeira devidamente autorizada a operar no país pelo Banco Central.
Não é o objetivo do presente texto, porém, analisar cada uma das modalidades, mas sim abordar um tema em específico que vem gerando relevante controvérsia na doutrina: a prestação de seguro-garantia com cláusula de retomada por parte da seguradora. Nos termos do artigo 102 da Lei de Licitações, na contratação de obras e serviços de engenharia o edital poderá não só exigir a prestação de garantia na modalidade seguro-garantia como também prever a obrigação de a seguradora assumir a execução da obra do serviço caso o licitante/segurado não o faça. Trata-se da assim chamada cláusula de retomada, que não é um instituto propriamente novo no Direito brasileiro.
O mecanismo de step-in rights, como é conhecida a cláusula de retomada, foi introduzido no Direito brasileiro em 2015, por meio da Lei nº 13.097, que alterou a redação da Lei nº 8.987/1995 (“Lei de Concessões”) e da Lei nº 11.079/2004 (“Lei das PPPs”) para estabelecer a possibilidade dos financiadores e garantidores do projeto procederem à assunção do controle ou da administração temporária da concessionária, para promover sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços [2].
Um primeiro aspecto a ser destacado é que a cláusula de retomada implica no aumento do risco a ser assumido pela seguradora, já que em caso de inadimplemento por parte do segurado ela lidará com questões que fogem da sua área de atuação. Bem por isso a inclusão dessa cláusula no edital deve ser justificada pela Administração, devendo sua utilização estar associada a um especial risco de inadimplemento. O seu uso implica em maiores custos de contratação, e, portanto, somente se justifica para mitigar riscos efetivos envolvidos na contratação.
Esse caráter de excepcionalidade é reforçado pelo texto do inciso I do artigo 102 (incluindo suas alíneas) da Lei de Licitações, que preveem uma série de prerrogativas para a seguradora. Caso exigida cláusula de retomada, a seguradora deve assinar o contrato e seus eventuais aditivos como interveniente anuente e poderá: a) ter livre acesso às instalações em que for executado o contrato principal; b) acompanhar a execução do contrato principal; c) ter acesso a auditoria técnica e contábil; d) requerer esclarecimentos ao responsável técnico pela obra ou pelo fornecimento.
Nessa mesma linha, ao assumir a posição de interveniente no contrato, em caso de inadimplemento do licitante segurado, a seguradora tem direito a receber os valores empenhados, inclusive, podendo ceder esse direito a terceiro, desde que demonstrada a regularidade fiscal deste. Além disso, a responsabilidade por executar o contrato pode ser objeto de subcontratação pela seguradora, situação em que ela contratará um terceiro para finalizar a obra ou serviço (incisos II e III do artigo 102).
Note-se, então, que com a cláusula de retomada a seguradora se torna parte efetiva do contrato e será chamada para concluir a obra ou serviço caso o segurado não o faça. Isto é, em caso de inadimplemento pelo contratado, sua obrigação passa a ser de executar a obra, e não apenas pagar a indenização, o que altera substancialmente o risco por ela assumido. Embora possa contratar terceiro para dar seguimento à execução contratual, os riscos envolvidos e as responsabilidade contratuais continuam a cargo da seguradora.
Com efeito, um grande reflexo do uso da cláusula de retomada é que a seguradora passa de uma simples função passiva de garantidora para uma posição ativa. Inclusive, ao se sujeitar à incidência da cláusula de retomada, a seguradora passa a ter o direito de escrutinar e fiscalizar os particulares, dada a possibilidade de vir a ser chamada para concluir a execução do contrato. Isso incentivará a seguradora a avaliar com muito mais atenção os segurados e acompanhar com muito mais atenção a execução do contrato.
Assim, um possível efeito da implementação do sistema é a elevação dos requisitos impostos pela seguradora para a prestação do seguro-garantia, que passará a adotar padrões de contratação bastante mais rígidos. Com isso, particulares que não tenham plenas condições de celebrar contratos com as seguradoras ficarão impossibilitados de participar de licitações que envolvam objetos complexos, o que tende a melhorar a qualidade do ambiente de contratações públicas. A ver, porém, como o mecanismo funcionará na prática, sobretudo em termos de redução da competitividade dos certames.
Por fim, o parágrafo único do artigo 102 da nova Lei de Licitações estabelece duas consequências decorrentes do acionamento da cláusula de retomada: a) caso a segurado conclua o objeto do contrato, fica isente da obrigação de pagar o valor indicado na apólice; b) caso a seguradora não assuma a execução do contrato, fica obrigada a pagar a integralidade do valor indicado na apólice. Isso quer dizer, então, que a seguradora pode escolher entre (1) concluir a obra ou serviço e (2) pagar o valor indicado na apólice? A resposta parece ser positiva, já que a Lei não estabelece qualquer punição caso a seguradora opte por não assumir a execução do contrato mesmo diante da existência de cláusula de retomada, ficando ela obrigada somente a prestar o seu papel tradicional: pagar o prêmio segurado em caso de inadimplemento por parte do licitante.
Nesse mesmo sentido é o entendimento de Marçal Justen Filho, para quem não há o que se falar em uma obrigatoriedade de da seguradora assumir a execução do contrato, podendo ela, caso queira, realizar o pagamento de seguro, seguindo a mesma lógica do seguro-garantia tradicional [3]. Se é a própria Lei de Licitações que estabelece que a única consequência derivada da decisão da seguradora de não assumir o contrato é o pagamento do valor indicado na apólice, que já é o seu papel usual, não há porque sustentar que ela tem a obrigação dar continuidade à execução contratual. Trata-se, porém, de tema controverso que ainda aguarda posicionamento dos tribunais.
Finalizando: como toda modificação legal, a inclusão da cláusula de retomada na Lei de Licitações traz efeitos positivos e feitos negativos. Se, por um lado, atribui-se maior segurança ao interesse público com a inclusão de um interveniente no contrato que pode vir a assumir a execução da obra ou serviço, aumentando as chances de sua regular finalização, por outro, acaba-se por incluir um elemento de complexidade à contratação, aumentando também, naturalmente, os custos da proposta.
Caio Augusto Nazário de Souza é advogado e membro da Comissão de Infraestrutura e Desenvolvimento Sustentável da OAB-PR e membro do Grupo de Estudos de Direito Processual Civil da PUC-PR.
Luis Henrique Braga Madalena é doutor em Filosofia e Teoria do Direito pela UERJ, mestre em Direito Público pela Unisinos, vice-diretor financeiro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e advogado.
Pedro Henrique Braz de Vita é advogado, professor, doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em parcerias público-privadas certificado pela APMG International (CP3P Foundation).
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 8.666/1993. 18ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 1191.
[2] GARCIA, Flávio Amaral; MOREIRA, Egon Bockmann. A futura nova Lei de Licitações brasileira: seus principais desafios, analisados individualmente. Revista de Direito Público da Economia [recurso eletrônico]. Belo Horizonte, v.18, nº 69, jan./mar. 2020. Disponível em https://dspace.almg.gov.br/handle/11037/37469. Acesso em: 8 de jun. 2022.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 1270-1271.