Culpa da administração pública regulamentada na Lei 14.133/2021
- 3 de março de 2023
- Posted by: Inove
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O princípio da legalidade é regra elementar no seio da administração pública por força do artigo 37 “caput” da Carta Federal. Inobstante a obviedade ululante de tal princípio, muitas vezes o administrador público “confunde” tal princípio com o artigo 5º, II da Carta Federal que — apesar de homônimo — tem sentido muitíssimo distinto.
Enquanto o princípio da legalidade do artigo 37, “caput” proíbe qualquer o ato administrativo que não tenha expressa previsão, o artigo 5º, II autoriza o cidadão a fazer tudo que não tenha expressa proibição.
Nomenclaturas idênticas para dois sentidos bem distintos.
Como os péssimos administradores valem-se da confusão de conceitos e da indigente técnica jurídica, não restou outra alternativa ao Ministério Público do Trabalho senão ajuizar ações civis públicas obrigando municípios relapsos com suas próprias contas a terem o mínimo de cautela com seus prestadores de serviços com mão de obra intensa.
Na ausência de regras expressas que impusessem deveres óbvios à administração pública, o órgão ministerial obreiro foi vencedor em uma infinidade de ações civis públicas que impuseram o zelo aos entes municipais.
O artigo 50 da nova Lei de Licitações veio regulamentar procedimentos que demonstram a inexistência de culpa da administração.
A existência de culpa é requisito previsto na Súmula 331 do C. TST, bem como no tema 246 de Repercussão Geral do C. STF.
O códex licitatório anterior (Artigo 71, §1º da Lei Federal 8.666/93) não previa procedimentos específicos que afastassem a culpa da administração pública.
Nesse diapasão previu a provecta lei de licitações:
“Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.
§1º. A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.”
O C. TST interpretou tal regra da seguinte maneira (Súmula 331):
“CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE
(…)
IV- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também no título executivo judicial.
V- Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666 de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada” (grifos nossos).
No mesmo diapasão é o Tema 246 de Repercussão Geral do C. STF:
“O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71§ 1º da Lei nº 8.666/93.”
A moribunda Lei 8.666/93 não disciplinou de maneira pormenorizada quais seriam os procedimentos que caracterizariam o zelo da administração pública nos contratos de terceirização.
Por conta de tal lacuna é que o Ministério Público do Trabalho ajuizou uma infinidade de ações civis públicas impondo obrigações aos municípios relapsos que não tomavam cautelas em relação aos seus contratados tampouco com o dinheiro público.
A imensa maioria das referidas ações civis públicas foi julgada procedente em primeira e segunda instâncias impondo deveres de cautela, notadamente junto à jurisdição do Egrégio TRT-15 com sede em Campinas.
Merece destaque a exigência de escritório do licitante vencedor no domicílio do ente político que — inobstante a aversão da jurisprudência consolidada das Cortes de Contas — acabou sendo acobertada pelo manto da coisa julgada.
Com a nova Lei de Licitações, porém, o tema recebe nova disciplina já que o artigo 50 da novel legislação detalha quais são os exatos procedimentos que descaracterizam a culpa prevista na Súmula 331 do C. TST e no tema 246 do C. STF.
Assim, prevê o novo diploma licitatório:
“Art. 50. Nas contratações de serviços com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, o contratado deverá apresentar, quando solicitado pela administração, sob pena de multa, comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e com o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) em relação aos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato, em especial quanto ao:
I-Registro de ponto;
II – Recibo de pagamento de salários, adicionais, horas extras, repouso semanal remunerado e décimo terceiro salário;
III- Comprovante de depósito do FGTS;
IV- Recibo de concessão e pagamento de férias e do respectivo adicional;
V- Recibo de quitação de obrigações trabalhistas e previdenciárias dos empregados dispensados até a data da extinção do contrato;
VI- Recibo de pagamento de vale-transporte e vale-alimentação, na forma prevista em norma coletiva”
Desta forma, os contratos em que a nova Lei de Licitações foi utilizada (há um período de convivência das duas leis por dois anos) o contrato será regido pelo artigo 50 acima transcrito e não mais pela ação civil pública que criou requisitos de demonstração de não culpabilidade da administração pública no âmbito dos contratos de terceirização com utilização de mão de obra intensa.
Nesse diapasão é a tranquila jurisprudência sedimentada nas notas de rodapé da obra clássica de Theotonio Negrão [1]:
“Art. 505. 7ª – A coisa julgada não impede que a lei nova passe a reger diretamente os fatos ocorridos a partir de sua vigência (RTJ 89/344, 117/516, 117/1.000, 121/42, RSTJ 60/367, 81/162)” (grifos nossos).
Desta forma, a nova Lei de Licitações criou parâmetros para o zelo/culpa da administração ressuscitando o princípio da competitividade outrora vilipendiados pelas ações civis públicas. O dever de manter escritório do licitante na sede do município, deu vida à uma espécie provinciana de reserva de mercado que — indiretamente — cria novos custos à administração pública.
Com a nova lei de licitações o tema foi definitivamente definido de maneira mais simples e objetiva, sepultando regras que criavam custos desnecessários.
Laércio José Loureiro dos Santos é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (ed. Dialética).
[1] CPC e legislação processual em vigor, ed. Saraivajur, 2018, 49ª edição, pág.540.