Antecipação de pagamento ao fornecedor
- 27 de outubro de 2023
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Verdadeiro dogma nas secretarias de finanças do Brasil, a vedação ao pagamento antecipado de despesa pública teve sua imutabilidade abalada pela NLLC (nova Lei de Licitações e Contratos).
A “proibição” encontra-se prevista nos artigos 62 e 63 da Lei Federal 4.320/64. Assim:
“Artigo 62. O pagamento da despesa só será efetuado quando ordenado após sua regular liquidação.
Artigo 63. A liquidação da despesa consiste na verificação do direito adquirido pelo credor tendo por base os títulos e documentos comprobatórios do respectivo crédito.”
Note-se que a interpretação lógica dos dois artigos conduz à conclusão de que o serviço/entrega do produto precede ao pagamento.
Também a preservação do erário conduz à mesma conclusão.
Porém, não há vedação expressa de pagamento antecipado. O que há é uma conclusão lógica decorrente de uma interpretação que utiliza os dois artigos da lei em detrimento da interpretação logico-sistemática do ordenamento jurídico como um todo.
Regras constitucionais, a lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro e a Lei de Licitações devem compor esse “mix hermenêutico” para que haja uma conclusão mais científica das regras de pagamento.
Pensamos que a regra é o pagamento posterior, mas a economia de dinheiro público ou a imposição de regras de mercado podem “temperar” a regra inicial, criando exceções pontuais.
Com fundamento no artigo 170 da Carta Federal de 1.988 o princípio da livre iniciativa deve ser observado nas aquisições feitas pelo Poder Público.
Nesse sentido o “dogma” do preço de mercado (decorrência da livre iniciativa) se manifesta no artigo 23 da NLLC, bem como no artigo 11, III do mesmo códex licitatório, vedando preços superiores aos estabelecidos no mercado.
Portanto, o mercado é aceito e regulamentado pela NLLC não podendo ser ignorado por regras financeiras que tem caráter adjetivo ou “processual/financeira” em relação às aquisições do Poder Público.
Fazendo uma analogia, o CPC não poderia simplesmente “proibir” um direito previsto no Código Civil, devendo haver compatibilização entre os dois Códigos.
A todo direito corresponde uma ação que o assegura, assim como para toda regra licitatória deve haver uma regra financeira que a assegure. As regras financeiras não são um fim em si mesmas, mas regras que são o meio para a garantia do interesse público primário.
Outra regra a ser observada para a interpretação da possibilidade de aquisição pelo Poder Público com pagamento antecipado é a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), verdadeiro “norte obrigatório” na interpretação das leis.
Assim, prevê o artigo 20 da referida Lindb:
“Artigo 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.”
Em síntese, o artigo 20 preconiza que os efeitos concretos devem ser levados em conta para a aplicação de uma regra jurídica.
Se a compra com pagamento posterior for impossível ou aumentar o preço do produto/serviço, parece-nos que o artigo 20 força a interpretação no sentido de “elastecimento” dos artigos 62 e 63.
A “reserva do possível” é uma regra de interpretação reconhecida pelo C. STF e o caso de pagamento prévio obrigatório imposto por regras de mercado enquadra-se nessa criação jurisprudencial.
Outra regra a ser observada é a regra da mesma LIND aplicável ao magistrado que não pode se eximir de julgar em razão de lacunas na lei.
Assim, prevê a Lindb:
“Artigo 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”
Ora, o administrador público não pode se eximir (analogamente) de implementar atividades públicas em razão da omissão da Lei 4.320/64 sobre aspectos de mercado, que, repita-se, não podem ser ignorados sob pena de ofensa ao princípio constitucional da livre iniciativa.
Se a lei 4.320/64 não enfrenta seu choque com o mercado, o administrador deve decidir com base nas consequências concretas, utilizando-se de analogia, costumes e princípios gerais do direito.
A alegação de que somente uma lei complementar poderia alterar a lei 4.320/64 é de um formalismo acaciano [1]. Como “utilizar-se” de uma “lei complementar” inexistente? Ou como privilegiar uma lei que ainda precisa ser formulada em detrimento da prestação efetiva do serviço público?
Não nos parece razoável tal hermenêutica de sepultamento do sentido prático da vida jurídica.
Por tais motivos, acima expostos é que o artigo 145, §1º da NLLC deve ser aplicado sem maiores receios à mingua de regras expressas e válidas em sentido contrário.
Assim, prevê a Lei 14.133/21:
“Artigo 145. Não será permitido pagamento antecipado, parcial ou total, relativo a parcelas contratuais vinculadas ao fornecimento de bens, à execução de obras ou à prestação de serviços.
§1º A antecipação de pagamento somente será permitida se propiciar sensível economia de recursos ou se representar condição indispensável para a obtenção do bem ou para a prestação do serviço, hipótese que deverá ser previamente justificada no processo licitatório e expressamente prevista no edital de licitação ou instrumento formal de contratação direta.”
A regra citada, porém, deve ser interpretada em consonância com os artigos 62 e 63 da Lei 4.320/64, ou seja, deve haver prévio empenho, liquidação antes do pagamento que ocorrerá, excepcionalmente antes do serviço prestado/objeto entregue com claras e inequívocas justificativas de regras de mercado (preço menor ou inviabilidade de pagamento posterior) pelo ordenador da despesa.
Laércio José Loureiro dos Santos é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed., Dialética, 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2023).
[1] Referência ao Conselheiro Acácio, personagem formalista e pedante da obra O primo Basílio de Eça de Queiroz.