Modulação dos efeitos das nulidades nas contratações públicas
- 10 de novembro de 2023
- Posted by: Inove
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O Direito Administrativo passa por transformações necessárias e indispensáveis à regulação das relações entre os administrados e a administração pública. Nesse cenário, destacamos a possibilidade de modulação dos efeitos das nulidades.
É bem verdade que essa modulação não se trata de novidade no ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que, por exemplo, está presente no processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade e da Ação Direta de Constitucionalidade, cuja lei remonta o ano de 1999 [1].
A Lei nº 13.655/2018, alterando a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Lindb), e o Decreto nº 9.830/2019 introduziram uma nova perspectiva à teoria das nulidades no Direito Administrativo brasileiro. Nas palavras de Roberto Carlos [2], “é preciso saber viver, saber viver” essa nova realidade que se coloca no âmbito do Direito Público brasileiro.
Antes de avançar, são necessárias algumas considerações sobre as nulidades no Direito Administrativo tradicional, caracterizado por uma teorização que, como regra, trabalha com um viés de uma vez reconhecida a nulidade, os seus efeitos serão retroativos à sua origem. Desse modo, Chico Buarque [3] tinha razão ao cantar que “eu não sei bem o que seja, mas sei que seja o que será, o que será que será que se veja, vai passar por la”. Isso porque não importam os fatos da vida e as consequências práticas da decisão. É suficiente o formalismo teórico.
É preciso também registrar que a doutrina discorre a respeito da aplicação do princípio do pas de nullité sans grief, ou seja, sem prejuízo não há nulidade. Essa ideia já acolhia em seu seio os valores da boa-fé e da legítima confiança que são pilares de estruturação da segurança jurídica.
O fato é que a Lindb nos apresenta uma nova perspectiva para a teoria da decisão, uma vez que se aplica na esfera administrativa, controladora e judicial, ao dispor que a decretação da invalidação de ato, contrato, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso as suas consequências jurídicas e administrativas — artigo 21.
Além disso, a motivação deverá demonstrar a necessidade e a adequação da invalidação do ato, contrato, processo ou norma administrativa, inclusive em virtude das possíveis alternativas — artigo 20 da Lindb. É preciso, pois, ponderação a respeito da conformação dos efeitos da decisão no mundo da vida administrativa.
O Decreto nº 9.830/2019, ao regulamentar a Lindb alterada no ano de 2018, inseriu no âmbito do Direito Administrativo a possibilidade de modulação dos efeitos do reconhecimento da invalidação de ato ou contrato administrativo, por exemplo — artigo 4º, §4º, I e II. A modulação consiste em analisar os efeitos da nulidade a partir de seu impacto sobre a realidade em uma perspectiva consequencialista. Imagine as consequências práticas do reconhecimento de nulidade de um contrato administrativo de manutenção de ar-condicionado.
No procedimento licitatório, após o encerramento das fases de julgamento e habilitação, exauridos os recursos administrativos, o processo de contratação será encaminhado à autoridade superior que, dentre alternativas, poderá proceder à anulação da licitação sempre que presente ilegalidade insanável.
Entende-se por ilegalidade insanável aquela que não pode ser corrigida diante da impossibilidade de reparação do dano ao interesse público. Não há alternativa à anulação. Esse tipo de situação pode ser configurada com a assinatura de um contrato administrativo sem qualquer planejamento, sem publicação de edital e sem seleção de interessados. Apesar disso, em virtude do artigo 147, da Lei nº 14.133/2021, será — e aqui é preciso sonhar e mover os moinhos de ventos — uma situação cada vez menos presente na esfera do Direito Administrativo brasileiro.
Esse artigo dispõe que, constatada a irregularidade na licitação ou na execução do contrato, não sendo possível o saneamento, a declaração de nulidade será precedida por uma análise de impacto invalidatório que está prevista nos onze incisos do artigo 147.
A Nova Lei de Licitações foi diretamente influenciada pela Lindb ao dispor no §2º, artigo 147, que ao declarar a nulidade do contrato administrativo a autoridade administrativa poderá decidir que ela só tenha eficácia (efeitos) em momento futuro. Assim, dentre as duas possibilidades de modulação (restritiva de efeitos e prospectiva de efeitos) a lei adotou a segunda categoria, no entanto, com fundamento na Lindb é possível a implementação da primeira categoria.
Um exemplo ajudará a compreender de forma mais clara a modulação dos efeitos da nulidade. Imagine, então, um contrato administrativo assinado que tem como objeto a prestação de serviços de manutenção de ar-condicionado.
Pois bem, agora imagine que após dois anos de sua execução e quando da assinatura do terceiro termo aditivo para prorrogação de vigência contratual, por alguma razão não foram adotadas as providências para sua assinatura dentro do prazo de vigência do contrato administrativo. “E agora, José, a luz se apagou, o povo sumiu” [4], e você autoridade administrativa competente tem que tomar uma decisão.
É nesse momento que a modulação dos efeitos do reconhecimento da nulidade se apresenta como um canivete suíço para auxiliar na tomada de decisão e na escolha da alternativa adequada para a situação. Assim, seria possível o reconhecimento da nulidade da assinatura do termo aditivo, uma vez que não existe mais contrato administrativo em virtude do fim de sua vigência.
Porém, com vistas à continuidade da atividade administrativa seria admissível realizar a modulação dos efeitos da nulidade, estabelecendo um termo inicial futuro para a sua efetivação. Sendo a nulidade reconhecida em data de 1 de outubro de 2023, a autoridade administrativa, nessa mesma decisão, estabelecerá que a nulidade somente produzirá efeitos em 1 de abril de 2024, sendo possível a sua prorrogação por mais seis meses, tempo esse que seria razoável para adoção das providências para uma nova licitação e nova contratação.
Em todo esse cenário, fica evidente que o Direito Administrativo caminha para um fortalecimento de outros mecanismos para correção de invalidades e realização do interesse público. É preciso compreender que há um dever de convalidar [5] ou de modular os efeitos de atos administrativos viciados.
O reconhecimento da nulidade com a modulação dos seus efeitos passa a ter centralidade na nova teoria das nulidades. Segundo Belchior [6], “você pode até dizer que eu estou por fora. Ou então que eu estou enganando. Mas é você que ama o passado e que não vê. Que o novo, o novo sempre vem”.
Carlos Nitão é mestre em Direito, pesquisador na área de licitações e contratações públicas no Brasil e procurador federal na AGU.
[1] Lei nº 9.969/1999 – Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
[2] Trecho da música É Preciso Saber Viver.
[3] Trecho da música Linha de Montagem.
[4] Trecho do poema E agora, José. Carlos Drummond de Andrade.
[5] Weida Zancaner. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 3ª ed. 2001.
[6] Trecho da música Como Nossos Pais. Belchior.