Possibilidade de Antecipação de Pagamento em Contratos da Administração
- 26 de setembro de 2019
- Posted by: Inove
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A possibilidade de pagamento antecipado nos contratos administrativos é excepcional, segundo asseverado no artigo 38 do Decreto nº 93.872, de 1986:
‘’Art. 38. Não será permitido o pagamento antecipado de fornecimento de materiais, execução de obra, ou prestação de serviço, inclusive de utilidade pública, admitindo-se, todavia, mediante as indispensáveis cautelas ou garantias, o pagamento de parcela contratual na vigência do respectivo contrato, convênio, acordo ou ajuste, segundo a forma de pagamento nele estabelecida, prevista no edital de licitação ou nos instrumentos formais de adjudicação direta’’.
A Corte de Contas Federal já se manifestou reiteradas vezes sobre o caráter excepcional do pagamento antecipado, que somente será possível mediante a presença das seguintes condições: previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de adjudicação direta, interesse público devidamente demonstrado e a apresentação de cautelas e garantias, o que deverá ser observado pelo gestor, na hipótese da presente avença se concretizar.
Em artigo intitulado “A questão do pagamento antecipado”, o professor Sidney Bittencourt lembra que até mesmo o projeto de lei que deu vida à Lei de Licitações autorizava, em algumas hipóteses, o adiantamento de pagamentos:
Art. 55, §1º. Os contratos de obras, de fornecimento para entrega futura de bens ou de serviços, especialmente os de serviços técnicos especializados que utilizem mão-de-obra intensiva, poderão prever adiantamentos de pagamentos, desde que não superiores ao valor da etapa em que se subdividir a sua execução, e desde que seja prestada garantia numa das modalidades previstas no art. 56 desta Lei, sem o limite estabelecido no §2º daquele artigo.
Esse dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, sob a razão de que a preservação do interesse público impunha o máximo de zelo e cautela, “que só tornam admissíveis pagamentos por bens e serviços efetivamente prestados ou fornecidos”.
Apesar do veto presidencial, “não ocorreu a supressão da condição de pagamento, indicada na alínea ‘d’ do inciso XIV do art. 40 (que trata das condições obrigatórias do edital e analogicamente do contrato nos casos de contratação direta), que permite prever compensações financeiras e penalizações, por eventuais atrasos, e descontos, por eventuais antecipações de pagamentos”.
Em casos pontuais observamos que um desconto no preço ajustado no contrato público – mesmo que mínimo – pelo pagamento antecipado de etapas ou itens de pagamentos pela contratada traria nítida vantajosidade tanto pra contratada como pra contratante.
Além dessa peculiaridade, existem outras ensejadoras de debates doutrinários a contestar o pagamento antecipado ou downpayment. É o caso da vedação contida no art. 62 da Lei nº 4.320/94 de que o pagamento somente será efetuado após a sua regular liquidação. Outro caso é o art. 65, inc. II, c, da Lei de Licitações, que proibiria a antecipação do pagamento sem a correspondente contraprestação do fornecimento de bens ou execução de obra ou serviço. Entendemos, porém, que tal proibição deve ser interpretada num contexto mais amplo da sistemática legal que rege o tema.
O TCU, de longa data, reconhece a possibilidade de a Administração, de forma excepcionalíssima, realizar pagamentos antes da efetiva execução do objeto contratado. (vide Acórdãos 134/95 e 59/99, ambos do Plenário).
Também é preciso alertar sobre a existência de julgados que consideram pagamento antecipado a permissão para que produtos adquiridos e pagos fiquem em poder do fornecedor, mesmo na hipótese de existir contrato adicional para o recebimento posterior pela Administração (Acórdãos 5161/14 – 2ª Câmara e 358/15 – Plenário).
Desta forma, a regra a ser seguida pela Administração é a realização de pagamentos somente após a entrega do bem ou execução do serviço. No entanto, quando esta opção for inviável ou não atender ao interesse público, torna-se possível e mesmo desejável a antecipação do pagamento, desde que cumpridos os requisitos supra apresentados.
Desta forma o pagamento realizado de forma antecipada poderá ser admitido, demonstrando-se a existência de interesse público e obedecidos os seguintes critérios de forma cumulativa: represente condição sem a qual não seja possível obter o bem ou assegurar a prestação do serviço e propicie economia de recursos; existência de previsão no edital de licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta e; adoção de indispensáveis cautelas ou garantias.
Aqui é mister fazer algumas ponderações. Toda principiologia de direito público (constitucional e legal) e leis em sentido estrito que disciplinam as licitações e contratações públicas tem força imperativa e cogente de hierarquia superior ao decreto 93.872/86.
Desta forma, restando robustamente comprovado que a antecipação de pagamento em contratos administrativos ou outra modalidade de ajuste público observa e privilegia os princípios da economicidade, supremacia do interesse público, eficiência administrativa dentre outros resta plenamente jurídica, justificada e legal a pretendida antecipação de pagamento.
Outra ponderação que deve ser feita e analisada caso a caso é que precisamos nos utilizar da hermenêutica para harmonizar normas aparentemente contraditórias. Até porque pela interpretação sistemática temos que o ordenamento jurídico é um grande sistema, ou seja uma todo unitário e como tal deve ser compreendido o que afasta a aplicabilidade automática do citado decreto (com excessivas exigências para antecipação de pagamento) a todos os casos, o que seria um erro.
Por fim, temos ao analisar o presente caso que as aparentes antinomias devem ser resolvidas pelos dois critérios mais científicos, quais sejam: o critério da especialidade: norma especial prevalece sobre norma geral e o critério hierárquico: norma superior prevalece sobre norma inferior.
Ora, o Decreto nº 93.872/1986: ‘’Dispõe sobre a unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional, atualiza e consolida a legislação pertinente e dá outras providências.’’ Ou seja, não trata diretamente de licitação e contratação pública.
Por sua vez os princípios e dispositivos constitucionais e legais retrocitados que flexibilizam a antecipação de pagamento tratam de licitação e contratação e são específicas no presente caso razão pela qual devem prevalecer numa solução de aparentes antinomias.
Concluímos que a antecipação de pagamento em contratos administrativos não pode ser ‘fator inviabilizador do ajuste em casos pontuais’ por disposição de norma infralegal antiga e não específica em detrimento da lei em sentido estrito e da principiologia que envolve verdadeiros vetores supralegais. Ensina nesse sentido, Marçal Justen:
‘’A maior dificuldade a ser enfrentada reside no pretenso formalismo adotado pela Lei nº 8.666/93. Muitas vezes, não há dúvida acerca da solução juridicamente mais correta. Hesita-se, porém, em reconhecer se tal solução seria, também, a mais acertada do ponto de vista legal. O dilema é mais aparente do que real, já que o ‘jurídico’ sempre deve prevalecer, em todas as hipóteses. Não se passa diversamente no tocante à Lei nº 8.666/93. O trabalho de interpretação e aplicação desse diploma deve ser norteado à realização da solução mais justa e compatível com o sistema jurídico vigente. Trata-se, enfim, de determinar os princípios hermenêuticos que nortearão a atividade do aplicador. Definir os princípios hermenêuticos é sempre relevante, no trabalho jurídico. Mas essa definição adquire maior importância quando se enfrenta um diploma com as peculiaridades da Lei nº 8.666. A atual Lei de Licitações preocupou-se em fornecer disciplina minuciosa e exaustiva para todas as possíveis hipóteses às quais se aplicasse. Visou reduzir ao mínimo a liberdade da Administração Pública na sua aplicação. Como consequência, o diploma se caracteriza por seu formalismo exacerbado e pela impossibilidade de soluções adotáveis ao sabor das circunstâncias. Diante desses pressupostos, é necessária enorme cautela no âmbito hermenêutico. Se o intérprete olvidar os princípios jurídicos fundamentais, acabará perdido diante das palavras da lei. Será inviável encontrar a solução para os problemas práticos sem um método hermenêutico adequado.’’ (negritos de ora)
O consagrado doutrinador aduz ainda:
‘’Afirma-se, com isso, que as palavras através das quais se exterioriza o texto legal não podem ser interpretadas em termos meramente gramaticais – ou melhor, não se pode restringir a interpretação à exclusiva tarefa vernacular. As palavras de um específico dispositivo legal retratam manifestação da vontade legislativa. Mas essa vontade legislativa é muito mais ampla do que a exteriorizada em um único dispositivo isolado. Cada palavra e cada artigo de um diploma legal consistem em, por assim dizer, indícios da vontade legislativa.’’(negritos de ora)
Deste modo, necessário se faz que o Administrador quando da aplicação da Lei de Licitação não só busque a aplicação pura e direta do dispositivo legal, mas também conjugá-lo com todos os princípios norteadores em busca da solução que melhor prestigie o interesse público e os fins buscados pelos procedimentos licitatórios.
Além de autorizada na lei, a antecipação parcial do pagamento é, muitas vezes, necessária em contratos de grande vulto, pois excluiria da competição ou contratação direta potenciais fornecedores desprovidos do suficiente capital de giro. Tal efeito vai de encontro à política de fomento aos pequenos e médios empreendedores, consubstanciada, entre outros instrumentos, na redação do art. 33, III, da Lei n. 8.666/93, na lei do pregão (Lei n. 10.520/02 e na Lei 13.303/2016).
Ainda, Marçal Justen Filho:
“Muitas vezes, a conveniência da antecipação é evidente. Os recursos estão disponíveis e, destinando-se a certo encargo, não podem ter outra aplicação. Se a Administração não puder efetivar pagamento antecipado, os recursos permanecerão sem utilização durante longo período. Nesse ínterim, haverá desvalorização da moeda. A Administração ainda se sujeitará ao pagamento de reajustes contratuais ou a recomposições extraordinárias de preços’’ (…) Quando se proíbe o pagamento antecipado e se institui a prévia execução do serviço ou entrega do bem, impõe-se restrição à participação no processo licitatório. Essa restrição é ainda mais reprovável por ser indireta e oculta. Aparentemente, inexistiria empecilho à participação de qualquer interessado. Na verdade, o ato convocatório exigiria um “financiamento indireto” por parte do interessado. Somente poderia participar quem dispusesse de recursos suficientes para antecipar o pagamento das despesas, reavendo os valores após a execução da prestação”.(negritos de ora)
Aqui, mutatis mutandis o mesmo raciocínio se aplica: poucas contratadas estariam envolvidas e incentivadas a participar de licitação se a vedação de antecipação de pagamento se tornar uma regra ou dogma quase absoluto na Administração Pública.
O TCU entende que antecipação ou ‘downpayment’ é possível desde que seja ofertada garantia à Administração Pública:
‘’O Tribunal de Contas da União, ao elaborar o Manual de Licitações e contratos: orientações e jurisprudência do TCU, orientou no sentido de ser possível a antecipação de pagamento referente ao cronograma previsto, após a execução de etapas ou parcelas já executadas, quando houver contrapartida na forma de desconto:
Nada obstante, o ato convocatório da licitação e o contrato poderão autorizar antecipação de pagamento em duas situações, devidamente justificadas. A primeira, prevista no art. 40, inciso XIV, alínea d, da Lei nº 8.666/1993, relaciona-se à possibilidade de a Administração eventualmente antecipar o cronograma de pagamento, referente a etapas ou parcelas já executadas, quando houver contrapartida sob forma de desconto previsto no edital. A segunda, que independe de liquidação da despesa, decorre de situações fáticas ou mercadológicas especiais e excepcionalíssimas. Nesse caso, para que a Administração não corra risco de responder por qualquer prejuízo, o pagamento antecipado deverá estar condicionado à prestação de garantia efetiva, idônea e suficiente para a cobertura do montante antecipado a título de pagamento, na forma previamente estabelecida no ato convocatório da licitação ou nos instrumentos formais de contratação direta, e no contrato. Antecipação de pagamento não é regra. É exceção’’ (negritos de ora)
Por fim, entendemos que a melhor e mais técnica abordagem do tema foge de extremismos e que como gestores ou operadores do direito possamos aplicar a melhor solução ao caso concreto levando em consideração a supremacia do interesse público. A doutrina e jurisprudência caminham juntas neste sentido!
Célio Leite – Advogado da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco – Chesf/Eletrobrás, pós graduado em Direito Público e Consultor em Direito Administrativo e Empresarial.