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Análise crítica da Responsabilidade Estatal no âmbito da Lei n. 14.133/2021
- 5 de abril de 2024
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Uma avaliação à luz da Jurisprudência do TST, Súmula 331-A, item IV e do STF.
Com a promulgação da Lei n.º 14.133/21, torna-se evidente a urgência de revisitar a temática da responsabilidade estatal que emerge no contexto da Lei Geral de Licitações e Contratos, nos contratos de terceirização de serviços. Este imperativo surge, primeiramente, devido às polêmicas históricas em torno da responsabilidade administrativa em decorrência da ausência de diretrizes claras pela Lei n.º 8.666/93 sobre a fiscalização efetiva dos contratos terceirizados. A matéria ganhou destaque com o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 16 pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, marcando significativamente o regime jurídico administrativo. No âmbito privado, a terceirização sempre foi palco de grandes polêmicas, o que demandou, desde 1986, posicionamento dos Tribunais do Trabalho do país.
Para além disso, a incorporação desta análise no presente momento é importantíssima dada a crescente preocupação dos servidores públicos, especialmente aqueles inseridos nas áreas de gestão e fiscalização contratual, em promover uma fiscalização cada vez mais rigorosa. Esta abordagem, por vezes, transforma os órgãos públicos em um pseudo-departamento de Recursos Humanos da empresa terceirizada, numa tentativa de afastar a responsabilidade da administração pública. No entanto, tal prática desvia o foco do entendimento sobre como e quando a responsabilização estatal efetivamente ocorre, um aspecto de suma importância, possivelmente até mais relevante do que as práticas atuais de gestão e fiscalização na tentativa de evitá-la.
Nesse sentido, é crucial entender como a Justiça do Trabalho avalia a responsabilidade estatal no âmbito judicial. Tal compreensão é vital para auxiliar, inclusive, a advocacia pública na elaboração de defesas mais qualitativas, as quais dependem diretamente das informações fornecidas pelos órgãos, muitas vezes solicitadas sob a forma de notas técnicas. Portanto, a relevância e a necessidade de abordar a responsabilidade do Estado são incontestáveis, em razão da publicação do novo Regime Geral de Licitações e Contratos.
Propõe-se, assim, uma análise crítica da responsabilidade subsidiária da Administração por verbas trabalhistas e solidária em relação às verbas previdenciárias dos empregados que prestam serviços sob contratos administrativos com regime de dedicação exclusiva de mão de obra, levando em consideração o cotejo entre a Lei Geral de Licitações e a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), especialmente aquela firmada pela Súmula 331-A.
Para tanto, é imperativo estabelecer dois contextos fundamentais para embasar a discussão proposta: o primeiro é a teoria do risco administrativo e, o segundo, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) acerca da terceirização. A intersecção desses contextos revela-se primordial para o entendimento da matéria na Lei n. 14.133/21, uma vez que o normativo aborda a matéria em razão da evolução do entendimento dos nossos Tribunais.
Da teoria do risco administrativo — primeiro contexto
A responsabilidade civil do Estado, enraizada na Constituição Federal, manifesta-se, explicitamente, no artigo 37, §6. Este dispositivo legal estabelece que tanto as pessoas jurídicas de direito público quanto as de direito privado que prestam serviços públicos assumirão a responsabilidade pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Essencialmente, a imposição da responsabilidade ao Estado exige a coexistência de três elementos: a conduta (seja comissiva ou omissiva), o dano efetivamente sofrido pelo terceiro, e o nexo causal entre a conduta do Estado e o dano. O §6 º do artigo 37 tornou-se emblemático da teoria do risco administrativo, uma vez que o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que a responsabilidade do Estado é objetiva, dispensando a necessidade de comprovar dolo ou culpa para o estabelecimento do dever de indenizar. Tal responsabilidade objetiva aplica-se inclusive nos casos de omissão estatal.
Contudo, é crucial reconhecer que esta teoria não possui caráter absoluto, admitindo a mitigação ou mesmo a exclusão da responsabilidade estatal. Exceções como o caso fortuito, a força maior, ou a culpa exclusiva da vítima podem afastar a responsabilização do Estado. Há um debate doutrinário e jurisprudencial relevante sobre a natureza da responsabilidade estatal em situações de omissão, sugerindo que, nesses casos, a responsabilidade deveria ser necessariamente subjetiva, exigindo a demonstração de, no mínimo, elementos de negligência, imprudência ou imperícia para configurar a obrigação do Estado em indenizar.
Este debate ganha contornos ainda mais complexos quando consideramos as decisões recentes do STF acerca de condutas omissivas do Estado, nas quais a Corte tem reiteradamente afastado a responsabilidade estatal pela ausência de um nexo causal claro entre a conduta omissiva e o dano ocorrido. Exemplificativamente, nos casos de fuga de detentos do sistema prisional que, foragido, comete um crime, questiona-se se o Estado deveria indenizar a vítima por falhas no dever de vigilância dos detentos que estão sob custódia do Estado. O STF tem se posicionado que, na ausência de um nexo causal direto entre a conduta omissiva (ato de fuga) e o crime (dano) não se configura a responsabilidade do Estado.
Para a corte, a fuga de presidiário e o cometimento de crime, sem qualquer relação lógica com sua evasão, extirpa o elemento normativo, segundo o qual a responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela conduta do agente. O que pode reforçar a tese de que, nas omissões, há, no mínimo, a dificuldade de implementar uma responsabilização objetiva. Reflita-se.
Essa análise sobre a aplicação da Teoria do Risco Administrativo é importante para o contexto da Lei Geral de Licitações.
A Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) acerca da terceirização — segundo contexto
Historicamente, a terceirização foi incorporada ao âmbito da Administração Pública em 1967, através do Decreto-Lei n.º 200, que sinalizou a possibilidade de execução indireta de algumas atividades estatais por terceiros, visando uma otimização na realização das funções finalísticas dos órgãos públicos. Posteriormente, em 1997, o Decreto n.º 2271 especificou as atividades que, preferencialmente, seriam realizadas por terceiros, estabelecendo marcos legais fundamentais para a terceirização no regime jurídico-administrativo.
No momento da promulgação do Decreto-Lei nº 200, a terceirização no setor público seguia paralelamente à dinâmica observada na iniciativa privada.
Na esfera privada, na época da promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943, a economia brasileira vivenciava uma transição, com trabalhadores rurais migrando do campo para a cidade. O contrato de trabalho era primordialmente caracterizado pela subordinação jurídica, permitindo ao empregador fiscalizar e direcionar as atividades de seus empregados conforme seus interesses.
Essa subordinação, aliada à baixa escolaridade dos trabalhadores migrantes rurais, ressaltava uma disparidade significativa nas relações de emprego, diferenciando o contrato de trabalho dos demais contratos privados. Para restabelecer essa desigualdade, o legislador trabalhista instituiu uma ampla regulamentação protetiva, impondo ao empregador diversas obrigações para assegurar direitos aos trabalhadores hipossuficientes. Essa estrutura jurídica originou princípios recorrentes na jurisprudência trabalhista, tais como o “indubio pro operário”, a “norma mais favorável”, a “primazia da realidade”, a “irredutibilidade salarial” e a “continuidade da relação de emprego”, dentre outros.
Com o tempo, a realidade econômica do país foi alterando e o cenário foi marcado pelo desestímulo das empresas em realizar novas contratações, face ao regime de proteção ao trabalhador que, embora criado para protegê-lo, não considerava a viabilidade econômica das empresas, questão fundamental para a geração de empregos. Essa realidade protetiva só começou a mudar com a reforma trabalhista de 2017, que flexibilizou alguns direitos anteriormente garantidos, permitindo uma margem maior de acordo entre as partes.
Diante disso, a terceirização emergiu como uma alternativa para os empregadores, uma vez que, atuando como tomadores de serviços, não necessitariam lidar diretamente com as questões trabalhistas.
Essa abordagem reflete a situação vivenciada pelo setor público com a publicação do Decreto-Lei nº 200, onde a terceirização assumiu um papel comparável ao observado na iniciativa privada, estabelecendo uma relação tripartite envolvendo o tomador dos serviços (Estado), a empresa contratada (empregador) e o trabalhador (empregado).
Nessa configuração, coexistem dois instrumentos jurídicos com vínculos distintos: o contrato administrativo entre o tomador de serviços e a empresa contratada, e o contrato de trabalho entre o empregador e o empregado terceirizado, delineando o modelo de terceirização lícita através da presença de três agentes e dois regimes contratuais.
Eventos que mudaram o rumo da história
Reprisando o regime jurídico administrativo, observamos que, entre a promulgação do Decreto-Lei nº 200 e o Decreto que definiu o rol de atividades passíveis de execução indireta pelo Estado, ocorreram dois eventos marcantes. O primeiro foi a promulgação da Lei Geral de Licitações, Lei nº 8.666, em 1993, e o segundo foi a edição do Enunciado n. 256, do TST.
A Lei Geral de Licitações — primeiro evento
A Lei n. 8.666/93, ao abordar os contratos de terceirização, tratou da matéria afeta à responsabilidade do estatal em razão de encargos trabalhistas, fiscais e comerciais no artigo 71, § 1º que indicava:
Art.71.§ 1º . A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.
Observa-se, da leitura, que a Lei sinalizava claramente que a responsabilidade do Estado não seria engajada, sob nenhuma circunstância, por danos relacionados a verbas trabalhistas de empregados prestadores de serviços nas dependências da Administração, atribuindo a responsabilidade exclusivamente à empresa contratada.
Surgia, então, uma indagação fundamental: a Lei de Licitações teria mitigado ou mesmo afastado a aplicabilidade da Teoria do Risco Administrativo, conforme previsto na Constituição Federal, no que tange aos contratos terceirizados? Guardemos a indagação.
Enunciado n. 256/86 do Tribunal Superior do Trabalho e sua nova versão – segundo evento
Para aprofundar a análise, recorda-se que, entre a promulgação do Decreto nº 200 e do Decreto nº 2271, dois eventos significativos imprimiram marcas no arcabouço legal da terceirização. O segundo, concernente ao âmbito privado, foi a edição do Enunciado nº 256 pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).
No setor privado, por volta do ano de 1986, quase quatro décadas após a promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o panorama da terceirização intensificou-se. Contudo, observou-se a ocorrência de inúmeras fraudes e terceirizações ilícitas. Tal cenário compeliu o Judiciário Trabalhista a manifestar-se por meio do Enunciado nº 256, o qual preconizava:
Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nº 6.019, de 3 de janeiro de 1974, e 7.102, de 20 de junho de 1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.
Entretanto, tal enunciado não se manteve perante as exigências do mercado laboral, face à crescente demanda por serviços terceirizados. Em resposta, o TST procedeu à reedição da súmula, doravante como nº 331/TST. Nesta fase de reedição, o Tribunal Superior do Trabalho introduziu uma disposição específica concernente à terceirização no âmbito da Administração Pública, mediante a inserção do inciso IV, ausente no enunciado original. O citado inciso IV determinava que o inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador acarretava a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços em relação a tais obrigações, abrangendo os órgãos da administração direta e indireta, desde que estes participassem da relação processual e figurassem no título executivo judicial.
O grande conflito:
A reedição do enunciado pela Súmula n.º 331 do TST instaurou um conflito direto com o texto da Lei de Licitações. E a doutrina e a jurisprudência dos tribunais se dividiram. Por uma vertente, postulava-se que a Lei de Licitações contrariava o princípio constitucional do valor social do trabalho e da dignidade da pessoa humana, haja vista a impossibilidade de eximir integralmente a responsabilidade estatal, notadamente à luz da Teoria do Risco Administrativo, inscrita no artigo 37, parágrafo 6º, da Carta Magna. Lado outro, defendia-se que o TST, ao promulgar a referida súmula em dissonância com a Lei de Licitações, ultrapassou suas prerrogativas jurisdicionais e infringiu a cláusula de reserva de plenário estabelecida no artigo 97 da Constituição Federal, pois, implicitamente, procedeu à declaração de inconstitucionalidade do artigo 71 da mencionada lei. Este impasse fomentou um cenário de substancial insegurança jurídica, compelindo o Governador do Distrito Federal, à época, a instaurar a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n.º 16, almejando obter do Supremo Tribunal Federal um veredicto que elucidasse a controvérsia.
O julgamento da ADC n. 16
No julgamento, com exceção do voto do Ministro Ayres Brito, foi declarada a constitucionalidade do dispositivo, esclarecendo que a Administração não teria responsabilidade pelos encargos não quitados pelas empresas.
Não obstante, o Supremo Tribunal Federal elucidou, ponto este de suma importância, que a exoneração de responsabilidade não se configurava absoluta nem automática, conforme sugeria o tenor do enunciado proferido pelo TST. Reconheceu-se, lado outro, a viabilidade de responsabilização subsidiária do Estado, desde que evidenciada a falha da Administração tanto na escolha (“in eligendo”) quanto na supervisão (“in vigilando”), da fiscalização dos contratos administrativos.Tal decisão representou, de fato, uma flexibilização da Lei Geral de Licitações (Lei n. 8.666/1993) que, mediante decisão subsequente no Recurso Extraordinário com repercussão geral reconhecida sob o tema 246, ratificou que, se verificada culpa da
administração na fiscalização do contrato administrativo, esta poderia, efetivamente, ser responsabilizada de forma subsidiária pelos débitos laborais não saldados pelas empresas contratadas.
Em face deste panorama, o Tribunal Superior do Trabalho procedeu à atualização do texto da Súmula, renumerando-a para 331-A, e inseriu um inciso novo para tratar especificamente da terceirização perante a Administração Pública. O texto emendado postula que:
“Os entes integrantes da administração pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei nº 8.666, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.”
Este ajuste na súmula delineava uma expectativa clara de como deveria operar a responsabilização:
1. Antes do julgamento da ADC nº 16 pelo STF, a conduta padrão era a condenação automática do ente público devido à inadimplência, implicando uma responsabilidade direta por obrigações não cumpridas.
2. Após o Julgamento da ADC nº 16 pelo STF, a Justiça do Trabalho passaria a exigir uma análise individualizada de cada caso, onde a responsabilização do ente público somente ocorreria se houvesse a comprovação de culpa (in eligendo / in vigilando), particularmente pela falta de fiscalização adequada do contrato administrativo com a empresa contratada.
Contudo, a realidade mostrou-se diferente das expectativas. Os tribunais do trabalho continuaram a condenar a administração de forma quase automática, uma vez que múltiplas questões permaneceram sem resposta clara, tais como:
3. Como efetivamente comprovar a culpa da Administração, uma vez que a Lei nº 8.666/93 não especificava detalhadamente os procedimentos que caracterizariam a devida diligência da administração pública na fiscalização dos contratos de terceirização?
4. Quem carregaria o ônus da prova em relação à adequada fiscalização – se seria incumbência dos entes públicos ou dos empregados em razão da autoria da ação trabalhista? Se de um lado temos o princípio da inversão do ônus da prova ao trabalhador, do outro temos as prerrogativas da administração.
5. A justiça trabalhista possuía competência para julgar questões que transcendem as relativas ao trabalho, adentrando na esfera da administração pública e sua fiscalização contratual?
Estas incertezas, que permaneciam no contexto subsequente ao julgamento do STF, impulsionaram o Ministério Público do Trabalho a iniciar uma série de ações civis públicas. O objetivo era estabelecer obrigações claras para os municípios, por exemplo, quanto à análise dos requisitos trabalhistas.
Reconhecendo a persistência dessas dúvidas, o Supremo Tribunal Federal identificou a necessidade de esclarecer quem detém o ônus de provar a falta de fiscalização por parte da Administração. Essa questão tornou-se o cerne do Tema 1.118 de Repercussão Geral, que, até o momento, ainda aguarda julgamento.
Este era o panorama sob a égide da Lei nº 8.666/93.
A chegada da Lei n.14.133/21
É importante notar que, a partir de 1º de abril de 2021, houve uma significativa reformulação no Regime Geral de Licitações e Contratos, marcada pela promulgação da Lei nº 14.133/21. Na temática, em determinada medida, a nova lei manteve o texto anterior da Lei nº 8.666, especialmente no que tange ao artigo 71, que havia sido objeto de análise e confirmado em sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. Notavelmente, o parágrafo 1º do artigo 121 da nova lei estipula que o inadimplemento da contratada não implica, de imediato, a transferência de responsabilidade para a administração pública pelo seu pagamento, exceto nas condições especificadas no subsequente parágrafo 2º.
Este segundo parágrafo esclarece que, exclusivamente nas contratações de serviços contínuos que exijam dedicação exclusiva de mão de obra, a administração é responsável de forma solidária pelos encargos previdenciários e de maneira subsidiária pelas trabalhistas, caso seja comprovada a falta de fiscalização adequada nas obrigações da contratada.
Assim, a Lei nº 14.133/21 alinha-se ao entendimento previamente estabelecido pelo STF, indicando que a responsabilidade da administração não é automática, mas condicionada à evidência de negligência na fiscalização dos contratos, tarefa obrigatória na administração.
Observa-se, com isso, que a nova Lei de Licitações emerge de um processo de maturação administrativa, não trazendo somente a replicação do julgado, mas abordando e sanando dúvidas que persistiam mesmo após o veredicto do STF.
O quesito afeto à falta de diretrizes para a fiscalização eficaz de contratos de terceirização, que não eram claramente delineadas pela Lei de 1993, são traduzidos de forma objetiva na Lei n. 14.133/21.
Conforme disposto no título II, capítulo II, especialmente na subseção III – que versa sobre os serviços em geral –, o artigo 50 da Lei nº 14.133/21 determina que, em contratos que envolvam regime de dedicação exclusiva de mão de obra, a contratada deve fornecer à administração, sob pena de multa, a comprovação do cumprimento das obrigações trabalhistas e do FGTS dos empregados diretamente envolvidos na execução do contrato.
Desta forma, a lei especifíca seis disposições que a administração tem o poder/dever de monitorar nos contratos, sendo:
I – registro de ponto;
II – recibo de pagamento de salários, adicionais, horas extras, e décimo terceiro salário;
III – comprovante de depósito do FGTS;
IV – recibo de concessão e pagamento de férias e do respectivo adicional;
VI – recibo de pagamento de vale-transporte e vale-alimentação, na forma prevista em norma coletiva.
Este conjunto de diretrizes objetivas visa garantir que, na eventualidade de questionamentos trabalhistas, seja possível verificar a diligência da Administração em fiscalizar a contratada, em razão dos quesitos que a Lei indica que podem ser acompanhados. Avançar na fiscalização de outros quesitos que não os indicados no art. 50, seria atribuir uma responsabilidade de uma gama excessiva de controles que não cabem no gerencialismo e na busca da eficiência, eficácia e efetividade que demandam as contratações contemporâneas, por força do parágrafo único do art. 11 do novo regime.
A Lei nº 14.133/21 avança ainda mais ao reconhecer o risco de inadimplemento de verbas trabalhistas como uma realidade inerente às contratações terceirizadas, sugerindo mecanismos para mitigar esses riscos, conforme apregoa o artigo 121, no seu § 3 e seus incisos, incluindo a possibilidade de exigência de caução, no caso de inadimplemento realizar o pagamento direto ao trabalho ou condicionar o pagamento à contratada e a possibilidade de depósito em conta vinculada.
A adoção desses mecanismos, juntamente com uma fiscalização efetiva conforme delineado pelo artigo 50, pode potencialmente eximir a administração de responsabilidades, desde que os gestores e fiscais documentem adequadamente suas ações e adotem as medidas de controle previstas.
Importante ressaltar que a mera solicitação de documentos não é suficiente sem a devida análise dos dados contidos e acompanhamento das obrigações contratuais, sublinhando a necessidade de uma gestão responsável e atenta por parte da administração pública.
Indo mais adiante, a norma reitera a proteção aos trabalhadores ao estabelecer, explicitamente no § 4º do artigo 121, que os valores da conta vinculada são absolutamente impenhoráveis:
§ 4º Os valores depositados na conta vinculada a que se refere o inciso III do § 3º deste artigo são absolutamente impenhoráveis.
Já era de minha compreensão, mesmo antes da promulgação da Lei nº 14.133/21, que os valores depositados em contas vinculadas deveriam ser considerados impenhoráveis, à exceção da multa do FGTS, dada a sua potencial natureza indenizatória. Esse posicionamento fundamentava-se no artigo 833, IV, do Código de Processo Civil (CPC), destacando-se pela sua intenção de proteger os direitos dos trabalhadores e assegurar a disponibilidade dos valores a eles destinados, independentemente de controvérsias judiciais envolvendo o empregador. Experiências exitosas de liberação de contas pela Justiça do Trabalho em 2013 evidenciaram ainda mais essa proteção, exemplificando a efetiva aplicação do princípio de proteção ao salário. Vejamos:
Art. 833, IV, do Código de Processo Civil – “São impenhoráveis: IV – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.”
Conclusão
Em razão de todo exposto, entende-se que com o cumprimento das obrigações indicadas no artigo 50 e com o estabelecimento de um ou mais controles previstos § 3º do artigo 121, a Lei nº 14.133/21 enfatiza a importância de uma fiscalização efetiva e a adoção de medidas para mitigar a responsabilidade da administração diante do inadimplemento das empresas contratadas.
A administração tem à sua disposição uma série de medidas coercitivas e preventivas, como a aplicação de multas contratuais, execução de garantias e utilização de contas vinculadas, para assegurar o cumprimento das obrigações pelas empresas contratadas. Contudo, essas ações, embora necessárias, podem não ser suficientes para resolver a questão de maneira integral.
Nesse contexto, a comunicação com sindicatos emerge como uma estratégia complementar crucial. Os sindicatos, por sua natureza e finalidade, possuem a obrigação constitucional de defender os interesses de suas categorias, incluindo a salvaguarda dos direitos trabalhistas. Portanto, ao enfrentar inadimplementos reiterados, a administração pública deve notificar os sindicatos correspondentes, não apenas como um ato de transparência e responsabilidade, mas como um mecanismo adicional de proteção aos trabalhadores afetados.
Esta abordagem evidencia a importância da sinergia entre as instituições públicas e as entidades sindicais no combate às violações de direitos trabalhistas no âmbito da terceirização. Ao integrar os sindicatos na gestão de conflitos trabalhistas, a administração amplia sua capacidade de monitoramento e intervenção, contribuindo para um ambiente de trabalho mais justo e para o fortalecimento das relações laborais.
Assim, a comunicação efetiva com os sindicatos não apenas favorece a resolução de problemas específicos, como também promove uma cultura de respeito aos direitos dos trabalhadores, alinhada aos princípios da responsabilidade social e da gestão pública eficiente.
1BRASIL. Constituição (1988). Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
2BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 608880. Ementa: A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público baseia-se no risco administrativo, sendo objetiva, exige os seguintes requisitos: ocorrência do dano; ação ou omissão administrativa; existência de nexo causal entre o dano e a ação ou omissão administrativa e ausência de causa excludente da responsabilidade estatal. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=3838114&numeroProcesso=608880&classeProcesso=RE&numeroTema=362]. Acesso em: [29/03/2024].
3BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema de Repercussão Geral nº 362. Título: Responsabilidade civil do Estado por ato praticado por preso foragido. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a responsabilidade civil objetiva, ou não, do Estado, pelos danos decorrentes de crime praticado por preso foragido, em face da omissão no dever de vigilância dos detentos sob sua custódia.
4BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema de Repercussão Geral nº 246. Título: Responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço. Relator(a): Min. Rosa Weber. Leading Case: RE 760931. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, II; 37, § 6º; e 97, da Constituição Federal, a constitucionalidade, ou não, do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que veda a responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço. Tese: O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93.
5BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema de Repercussão Geral nº 1118. Título: Ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246). Relator(a): Min. Nunes Marques. Leading Case: RE 1298647. Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, II, 37, XXI e § 6º, e 97 da Constituição Federal, a legitimidade da transferência ao ente público tomador de serviço do ônus de comprovar a ausência de culpa na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas devidas aos trabalhadores terceirizados pela empresa contratada, para fins de definição da responsabilidade subsidiária do Poder Público.
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Autora Luana Carvalho:
Docente no curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília). Docente no curso de Pós-Graduação em Licitações e Contratos, na disciplina de Contratações Diretas, pela Polis Civitas -PR. Docente no curso de MBA em Governança das Contratações, pela Unyleya, na disciplina de Planejamento Estratégico e sua influência na Governança das Contratações. Professora Universitária: Direito Penal, Comercial, Civil, Tributário e Administrativo. Servidora Pública de carreira do Judiciário Federal, atuando como Subsecretária de Compras Licitações e Contratos, como Assessora Jurídica, como Assessora Socioambiental, como Assessora Técnica da Secretaria de Administração, como Auditora Interna na área de Licitações e Contratos e na Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência – TNU. Realizou inspeções pela Corregedoria-Geral da Justiça Federal. Instrutora: ministrando cursos na área de Licitações e Contratos para toda a administração pública, em especial para os órgãos superiores, pelo Centro de Estudos Judiciários – CEJ/JF, pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM – Educa ENFAM), pelo CEJUD/CNJ, pelas Escolas Judiciais da Justiça do Trabalho, pela Escola de Contas do TCE PE, pela Escola de Gestão de Contas vinculada ao TCMSP, dentre outros. Coordenadora Científica e idealizadora do Simpósio sobre licitações e contratos da Justiça Federal, com a publicação de enunciados que servem como base doutrinária para apoiar as atividades desenvolvidas por servidores envolvidos no macroprocesso de contratações.. Consultora técnica em licitações, contratos e conta-depósito vinculada. Membro do Núcleo Técnico da Companhia Brasileira de Governança – CBG. Membro do Comitê Gestor da Política de Governança das Contratações do Judiciário– CNJ. Foi membro do então Comitê Técnico de Controle Interno do Judiciário. Fundadora do projeto “de bombeiro a pregoeiro” (Governança). Fundadora do projeto Day-DY(namics), que impulsiona a retenção de talentos nas áreas administrativas dos órgãos da administração pública, com análise de perfil comportamental e habilidades. Auditora: por 08 anos (iniciativa privada). Graduação: Direito; Pós-Graduação: Direito Público-Tributário; MBA: Gestão Pública; Mestrando em Estudos Jurídicos com ênfase em Direito Internacional pela Must University – Flórida – EUA.