Estatais e equilibrismo entre legislações para utilização do pregão eletrônico
- 3 de junho de 2022
- Posted by: Inove
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Uma das diretrizes trazidas pelo artigo 32 da Lei nº 13.303/16 foi a adoção preferencial da modalidade pregão eletrônico e sobre essa diretriz Zymler et al (2018, p. 100-101) confirmam que a modalidade pregão incorporou ao ordenamento jurídico diversos institutos que foram bem-sucedidos no ambiente de contratações públicas, como a realização do certame por meio eletrônico, a apresentação de proposta por meio de lances, a inversão de fases e a fase recursal concentrada, complementando que todas essas funcionalidades foram contempladas pela Lei nº 13.303/16, de modo que sopesam a diretriz de adoção preferencial da modalidade pregão eletrônico.
Com interpretação mais radical, Nieburh e Nieburh (2018, p. 100-101), defendem que “a previsão de adoção preferencial da modalidade pregão para bens e serviços comuns é desnecessária, porque o procedimento previsto na Lei nº 13.303/16 é praticamente o procedimento da modalidade pregão”.
Em outros términos, “a coexistência de dois regimes aplicados às estatais vai ao encontro do propósito do constituinte em estatuir um regime de contratações único aplicado ao universo de contratações das empresas públicas e sociedades de economia mista” (ZYMLER et al, 2018, p. 101).
Nessa toada, conforme cautela hermenêutica, Ronny Charles (2016) defende, sobre a adoção do pregão eletrônico:
“Assim, embora o dispositivo indique a adoção preferencial do pregão, não há outras modalidades licitatórias indicadas pela lei a serem preteridas, o que reflete um erro grosseiro no texto legal. A interpretação adequada desta regra parece ser que, na modelagem do processo licitatório, a estatal deve utilizar, preferencialmente, procedimento assemelhado ao do pregão.”
De maneira objetiva, portanto, a diretriz de adoção preferencial do pregão eletrônico é um direcionamento, tendo o espírito da norma a intenção de indicar como regra geral que, para as estatais, a licitação será guiada pelos aspectos gerais do pregão: apresentação de propostas através de lances, modo de disputa aberto e inversão de fases, com a habilitação ocorrendo após o julgamento das propostas, de modo que, como confirma Zymler et al (2018, p. 102), “no caso de aquisição de bens e serviços comuns, ressalvadas as hipóteses justificadas, não é possível usar o modo de disputa fechado e inverter as fases de julgamento e habilitação”.
Nesse sentido, e sob essa perspectiva de diretriz, não há imposição de utilização ortodoxa da modalidade pregão eletrônico em si, mas uma indicação de que o rito célere, ágil e em busca da eficiência que tende a ser a tônica desta modalidade, seja aplicado pelas regulamentações das estatais, com fundamento no próprio procedimento moldável que a Lei nº 13.303/16 apresentou.
Destarte, desde a publicação da Lei das Estatais, a diretriz sobre a adoção da modalidade pregão eletrônico é discutida sob o espectro da aplicabilidade e utilidade, o que ganhou novo relevo com a edição do Decreto nº 10.024/19.
Decreto nº 10.024/19 e sua aplicação às estatais
O Estado vive um momento de mutação há bastante tempo, de modo que a mudança é algo que será permanente no ambiente do Direito Público e da Gestão Pública, cabendo aos que atuam com o Direito Administrativo, a capacidade de se adaptarem a essa diuturna transformação como um legítimo traço caracterizador do Estado contemporâneo, de modo que o exercício democrático do poder “passa necessariamente por fazer de sua capacidade de adaptação às mudanças uma condição essencial da sua própria existência” (Rodríguez-Araña Muñoz, 2012, p. 25).
Trilhando o caminho das perenes alterações na Administração Pública, foi publicado, em 2019, Decreto nº 10.024, que regulamenta a licitação na modalidade pregão, na forma eletrônica, para a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns, incluídos os serviços comuns de engenharia, no âmbito da administração pública federal, revogando, ainda, o Decreto nº 5.450/05 e o Decreto nº 5.504/05.
Apesar de ser um normativo que já era esperado há um bom tempo, não obstante o avanço em temas como orçamento sigiloso e o maior desconto como critério de julgamento, bem semelhantes ao regime instituído pela Lei nº 13.303/16, o artigo 1º, §2º do Decreto em referência, de certa maneira, não impõe sua utilização por parte das empresas estatais, já que prevê que as empresas públicas, as sociedades de economia mista e suas subsidiárias, nos termos do regulamento interno de que trata o artigo 40 da Lei nº 13.303, poderão adotar, no que couber, as disposições do Decreto.
Assim, da análise do acima transcrito, percebe-se que o Decreto facultou às estatais a sua utilização, assunto que ficará a cargo do regulamento interno de licitações e contratos de cada entidade, nos termos do artigo 40 da Lei nº 13.303/16, fazendo ainda o destaque de que aplicação será apenas no que couber, já pelo normativo entender que há disposições no Decreto que são incompatíveis com o regime jurídico das empresas estatais.
A opção de utilização do Decreto nº 10.024/19 pelas estatais foi uma faculdade trazida pelo próprio Decreto, portanto, a resposta rápida e pronta de que as estatais devem fazer uso da faculdade de adoção do pregão eletrônico deve ser repensada, o que se apresenta a seguir.
Compatibilidade do decreto com a Lei nº 13.303/16
Diante da reflexão do tópico anterior, há que se questionar os limites da discricionariedade da aplicação do Decreto nº 10.024/19 às empresas estatais, sob a perspectiva de, em se aplicando, haver derrogação do uso das disposições da Lei das Estatais no que for conflitante com o novo Decreto ou, ainda, a possibilidade de se admitir, de certa medida, a juridicidade de haver pinçamento apenas os institutos que eventualmente a empresa estatal entender juridicamente viáveis e compatíveis com seus respectivos regulamentos.
Essa ponderação é imperiosa pois, por exemplo, o artigo 40 do Decreto nº 10.024/19 prevê que, para a habilitação dos licitantes, será exigida, exclusivamente, a documentação relativa à , entre outros, regularidade fiscal, trabalhista e cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 7º da Constituição.
E como cediço, uma das grandes inovações da Lei das Estatais foi deixar em aberto do sistema de habilitação das licitações das entidades que regula, não fazendo quaisquer menções à regularidade fiscal, trabalhista e apresentação da certidão de que não emprega menor, nos termos da Constituição Federal, por exemplo. É matéria, portanto, peculiar a cada entidade regulamentadora.
O mesmo raciocínio aplicado às certidões, podemos aplicar para o sistema sancionatório: a penalidade do artigo 49 do Decreto [1] é mais gravosa do que a pena do artigo 83, inciso III da Lei nº 13.303/16 [2], e ambas se aplicam aos mesmos eventos, seja na licitação em si, seja na execução do contrato.
Ainda pode-se considerar as questões mais benéficas na Lei das Estatais, sob o ponto de vista da publicidade que é de cinco dias úteis [3] para o caso de aquisição de bens, inferior ao do pregão eletrônico, que é de, no mínimo, oito dias úteis [4].
Diante dessas incompatibilidades, caso uma empresa estatal entenda, via seu regulamento, pela aplicação do Decreto nº 10.024/19, haverá uma espécie de retorno ao sistema de habilitação da Lei nº 8.666/93, que sequer tem aplicação subsidiária à Lei nº 13.303/16. Estariam as empresas estatais autorizadas, então, a pinçar do Decreto nº 10.024/19 o que entendesse conveniente e mesclando com o regime da Lei das Estatais, podendo, por exemplo, adotar o prazo do Decreto nº 10.024/19 para a apresentação da proposta, mas elegendo da parte sancionatória da Lei das Estatais?
Entendendo as questões suscitadas acima como verdadeiras, haverá tantos pregões eletrônicos quantas forem as estatais que optarem pela utilização do Decreto, dada a possibilidade de moldar o uso a partir do regulamento interno. E isso poderá afastar toda a inovação que trouxe a Lei nº 13.303/15, modernização paulatinamente absorvida pelas próprias estatais.
A par dessas considerações, é de se reconhecer que o próprio sistema licitatório da Lei das Estatais já atende aos “novos” elementos que o Decreto em referência traz: orçamento sigiloso, meio de disputa aberto e aberto/fechado, critério de julgamento maior desconto, a possibilidade de licitar e contratar serviços comuns de engenharia.
É nesse sentido que caminha a jurisprudência do Tribunal de Contas da União que, no Acórdão 1213/21 Plenário registrou que “observa-se que o procedimento de licitação no modo de disputa aberto guarda significativa semelhança com a sistemática do pregão, conforme se depreende da leitura dos artigos 51 a 62 da Lei 13.303/2016″.
Assim, a partir de uma análise pragmática da legislação sobre o pregão eletrônico, entendemos que a relação de custo-benefício para que cada estatal regule a aplicação do Decreto nº 10.024/19 no âmbito interno não é atrativa, tendo em vista os vários instrumentos que deverão ser compatibilizados, além de muitos instrumentos já serem plenamente atendidos pelas disposições da Lei nº 13.303/16.
Noutras palavras, em certos pontos o Decreto nº 10.024/19 vai de encontro aos avanços da Lei nº 13.303/16, ou apresenta previsões que não se alinham com o procedimento licitatório instituído pelo regime jurídico das empresas estatais, além de as inovações trazidas pelo normativo serem, praticamente, a rotina do sistema licitatório da Lei das Estatais, motivo pelo qual entendemos que as empresas estatais não devem ceder à utilização facultativa do pregão eletrônico nos moldes do Decreto nº 10.024/19, inclusive porque a utilização da modalidade pregão eletrônico é, para a Lei das Estatais, apenas uma diretriz.
Reflexos na diretriz de utilização preferencial do pregão
Muito embora a discussão acerca do alcance da diretriz da utilização preferencial do pregão eletrônico pelas empresas estatais trazida pelo artigo 32, inciso IV, exista desde a publicação da Lei nº 13.303/16, o tema ganhou novo relevo com a publicação da Nova Lei de Licitações, a Lei nº 14.133/21.
Como cediço, o artigo 193 da Lei nº 14.133/21 dispõe que após decorridos dois anos da publicação oficial da Lei, abril/23, revoga-se a Lei nº 10.520/02.
A diretriz trazida pela Lei das Estatais expressamente faz menção à adoção preferencial da modalidade de licitação denominada pregão, instituída pela Lei nº 10.520/02 que, como se viu, vigerá apenas até abril/2023.
Adotando-se o entendimento de que a diretriz é impositiva, um novo problema advirá para as estatais: a revogação da Lei nº 10.520/02 e a previsão do artigo 189 da Nova Lei de Licitações, que determina que aplica-se a Lei nº 14.133/21 às hipóteses previstas na legislação que façam referência expressa à Lei nº 10.520/02, de maneira que poderá ser entendido que as empresas estatais estariam autorizadas a utilizar o pregão trazido pela Lei nº 14.133/21, o que não parece fazer sentido, especialmente considerando que o artigo 1º, §1º da mesma Lei é taxativo ao admitir que não são abrangidas por ela as empresas públicas, as sociedades de economia mista e as suas subsidiárias.
Conclusão
A gestão pública contemporânea demanda novas práticas, de acordo com ideais de eficiência, probidade, em busca do atendimento do interesse público, porém, reconhece-se que abdicar do uso do pregão eletrônico demandará uma mudança de cultura institucional tão grande quanto foi a própria regulamentação e uso da Lei das Estatais, com a ressalva que a utilização da Lei importou em eficiência nas licitações e contratações, o que não se garante com a utilização do pregão eletrônico, pois, em relação à Lei nº 13.303/16, não apresentou avanços relevantes e significativos.
É essa ideia de utilidade que as estatais deverão ter em mente quando optarem conscientemente pela utilização do Decreto nº 10.024/19, inclusive porque também será imprescindível a previsão interna do pregão eletrônico, dado que a Administração Pública, para que se ajuste de maneira adequada, deverá responder preliminarmente a critérios internos da sua própria regulamentação.
Com efeito, a necessidade de regulamentação interna, por cada estatal, do Decreto nº 10.024/19, torna-se cada vez mais necessária, especialmente após a publicação da Lei nº 14.133/21 e seus reflexos indiretos às licitações das empresas estatais, especialmente no que tange ao pregão eletrônico.
Enxergar a Lei nº 13.303/16 como legislação inteira, seja para aquisição de bens, seja para contratação de obras é um passo relevante para a mudança de padrão, pois essa legislação já conta com todos os elementos e instrumentos para que se efetive todo tipo de aquisição e contratação.
Renila Lacerda Bragagnoli é mestranda em Direito Administrativo e Administração Pública pela Universidade de Buenos Aires, especialização em Políticas Públicas, Gestão e Controle da Administração pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP-DF). Advogada de carreira de empresa pública federal desde 2009. Gerente da Procuradoria Jurídica da EPL. Professora, autora, palestrante.
Referências
NIEBUHR, Joel de Menezes; NIEBUHR Pedro de Menezes. Licitações e Contratos das Estatais. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
RODRÍGUEZ-ARAÑA MUÑOZ, Jaime. Direito fundamental à boa Administração Pública. Tradução Daniel Wunder Hachem. Belo Horizonte: Fórum, 2012
TORRES, Ronny Charles Lopes de. As licitações públicas na nova Lei das Estatais (Lei Federal nº 13.303/2016). Revista Síntese. Disponível em http://www.bdr.sintese.com/AnexosPDF/RLC%2037_miolo.pdf Acesso fevereiro de 2022.
ZYMLER, Benjamin et al. Novo regime jurídico de licitações e contratos das empresas estatais: análise da Lei nº 13.303/2016 segundo a jurisprudência do Tribunal de Contas da União. Belo Horizonte: Fórum, 2018.
[1] Artigo 49. Ficará impedido de licitar e de contratar com a União e será descredenciado no Sicaf, pelo prazo de até cinco anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e das demais cominações legais, garantido o direito à ampla defesa, o licitante que, convocado dentro do prazo de validade de sua proposta:
[…]
[2] Artigo 83. Pela inexecução total ou parcial do contrato a empresa pública ou a sociedade de economia mista poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:[…] III – suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a entidade sancionadora, por prazo não superior a dois anos.
[3] Artigo 39. Os procedimentos licitatórios, a pré-qualificação e os contratos disciplinados por esta Lei serão divulgados em portal específico mantido pela empresa pública ou sociedade de economia mista na internet, devendo ser adotados os seguintes prazos mínimos para apresentação de propostas ou lances, contados a partir da divulgação do instrumento convocatório: I – para aquisição de bens: cinco dias úteis, quando adotado como critério de julgamento o menor preço ou o maior desconto;
[4] Artigo 25. O prazo fixado para a apresentação das propostas e dos documentos de habilitação não será inferior a oito dias úteis, contado da data de publicação do aviso do edital.