Exemplo de gestão pública e visão de futuro com o Vale da Eletrônica brasileiro
- 2 de dezembro de 2019
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Com uma gestão pública à frente de seu tempo e consciente de que o segredo do desenvolvimento de um país deve estar focado na educação e, especialmente hoje, na tecnologia, Santa Rita do Sapucaí/MG é um exemplo de prosperidade, inovação e visão de futuro. Os cidadãos santa-ritenses orgulham-se em dizer: nós somos os moradores do Vale da Eletrônica, como ficou conhecida a pequena cidade que concentra grande produção e desenvolvimento de hardware, que abriga mais de 160 empresas de tecnologia (indústrias e startups), com um faturamento de mais de R$ 3 bilhões em 2018 (segundo dados do Sindicato das Indústrias, Aparelhos Elétricos, Eletrônicos e Similares do Vale da Eletrônica – Sindvel).
A receita de sucesso de Santa Rita do Sapucaí é percebida em várias outras cidades do mundo e fala sobre como a educação, a inovação e a tecnologia podem caminhar juntas para transformar as cidades e a vida de seus moradores.
Um pouco de história
Localizada ao Sul de Minas Gerais e a 387 km de Belo Horizonte, Santa Rita do Sapucaí possui 42.751 habitantes (dados do IBGE 2018). Sua localização é privilegiada e de fácil acesso aos grandes centros de negócio do país – São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Antes conhecida por sua vocação produtora de leite e café, é hoje identificada nacional e internacionalmente como o Vale da Eletrônica (o Vale do Silício brasileiro).
Tudo começou em 1958, com a primeira escola técnica em eletrônica da América Latina (a 7ª do mundo), chamada Escola Técnica em Eletrônica Francisco Moreira da Costa (ETE-FMC). Foi criada por Luiza R. Moreira, mais conhecida como Sinhá Moreira, que após uma viagem para o Japão e conhecendo a história sobre como esse país havia se reerguido pós 2ª guerra, convenceu-se de que o segredo da transformação estava nos investimentos focados em educação e em tecnologia. Após seu retorno ao Brasil, apresentou seu projeto ao Presidente Juscelino Kubitschek, e logo foi fundada a ETE-FMC, escola que proporcionava capacitação e formação de mão de obra especializada capaz de suprir a demanda de produtos e eletroeletrônicos que se encontrava em plena expansão na região.[1]
Posteriormente, foi fundado no município o Instituto Nacional de Telecomunicações (INATEL – a primeira faculdade de engenharia das telecomunicações no país), para pesquisa, ensino/graduação e pós-graduação em engenharia elétrica e telecomunicações, e também responsável, ainda que informalmente, pelas primeiras experiências de incentivo e incubação de empresas entre as décadas de 70 e 80 na cidade, estimulando especializações nos setores da eletrônica e telecomunicações.
Como uma resposta rápida e necessária da cidade aos novos rumos de sua economia e apoiada pela Prefeitura e pela Federação das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG), em 1984 foi fundada (informalmente) a Associação Industrial de Santa Rita do Sapucaí. Em 1985, apoiado pelas lideranças locais, o Poder Público Municipal criou o emblema Vale da Eletrônica, em referência ao Vale do Silício (EUA), com o objetivo de incentivar o crescimento das empresas já existentes e também estimular a criação de novas empresas através de políticas direcionadas e dos programas de incubação.
Hoje o município oferece 11 cursos técnicos e 22 de pós-graduação (focados em tecnologia), e abriga 3 incubadoras, 31 startups em fase de incubação, 60 laboratórios de P&D, e já possui em seu histórico a criação de 14 mil produtos. Santa Rita do Sapucaí é um centro de talentos em tecnologia. Dentre as startups fixadas na cidade, por exemplo, está a Neurobrinq, empresa que trabalha com tecnologia afetiva e desenvolve soluções para crianças com autismo (incluindo um jogo que estimula fazer tarefas em casa ou caminhar pela cidade). Há, também, a Sancult que trabalha com equipamentos eletromédicos e está testando um aparelho a ser usado em fisioterapia, que promove a regeneração celular.
Diante do desafio de reter seus talentos profissionais, esta foi a receita de sucesso da cidade, que antevendo as mudanças e a necessidade futura de inovação e tecnologia, formou um contingente muito qualificado de profissionais que a colocou à frente de muitas outras regiões tornando-se um atrativo para empresas de tecnologia que começaram a nascer e/ou a vir se instalar na própria localidade (inclusive chamando a atenção de empresas internacionais que buscam colaboradores na cidade para compor os seus times).
Você sabia que:
A urna eletrônica brasileira
A tornozeleira eletrônica
O transmissor de TV digital
O chip do passaporte eletrônico
São tecnologias projetadas e desenvolvidas em Santa Rita do Sapucaí?
Com a evolução deste contexto e com uma visão ampla e sistêmica da gestão municipal, fortalecida pela união entre Poder Público, academia e indústria, Santa Rita do Sapucaí tornou-se uma importante cidade no cenário de tecnologia brasileiro e é reconhecida mundialmente pelo desenvolvimento e produção especialmente de eletroeletrônicos e possui forte comércio com inúmeros países. Seus produtos voltam-se principalmente para os setores da eletroeletrônica, telecomunicações, segurança, informática, rádio difusão, automação industrial, predial, comercial, TI, eletro-médicos, insumos e prestação de serviços.
Case de sucesso baseado na atuação assertiva do gestor público e de uma ampla visão de futuro coletivo
No Vale da Eletrônica, a parceria entre o setor privado e o Poder Público é sólida, com significativos estímulos municipais para fomentar o investimento e o empreendedorismo na localidade: são disponibilizados terrenos, custeados aluguéis, estruturas e incentivos em impostos governamentais que favorecem o desenvolvimento e o sucesso das empresas na cidade.
Seguindo o propósito de transformação, desenvolvimento do planejamento e visão de longo prazo da gestão, o preparo e incentivo ao empreendedorismo já é despertado nas escolas e segue seu fluxo de evolução e aprendizado até a criação de diversas empresas, para as quais são disponibilizados recursos, incentivo e estrutura locais para que os jovens possam criar seus projetos e os transformarem em grandes negócios, mantendo a mão de obra qualificada na cidade e gerando renda, trabalho e crescimento para todos.
Pensando no fomento e desenvolvimento das diversas potencialidades humanas, culturais e econômicas da cidade, anualmente são realizados investimentos que vão desde a saúde, segurança e educação até cultura e desenvolvimento social. O projeto Cidade Criativa, Cidade Feliz,[2] por exemplo, forma uma rede colaborativa que une voluntários, iniciativa privada e instituições públicas na promoção do desenvolvimento da economia criativa e da qualidade de vida do cidadão, realizando eventos como o Hacktown (saiba mais em hacktown.com.br), festival de criatividade e inovação que em 4 dias realiza mais de 600 palestras, showcases, workshops e atividades variadas, atraindo para a cidade cerca de 5 mil pessoas de todo o país e também do exterior.
Os índices em qualidade de vida de Santa Rita do Sapucaí sobressarem da habitualidade: a expectativa de vida por lá é de 74 anos e IDMH de 0.72, considerado de alto desenvolvimento humano e com renda per capita 14% acima da média estadual[3]. A título de complemento, enquanto a média da renda per capita do brasileiro é de R$ 27,9 mil ao ano, em Santa Rita esse valor sobe para R$ 31,6 mil ao ano (dados de início de 2018).[4]
A inovação transformando a gestão pública brasileira
Vivemos em uma era de evolução rápida e em constante ebulição – o novo de hoje, logo amanhã já corre o risco de ser considerado ultrapassado (é possível que em algum lugar desse mundo alguém já esteja pensando ou desenvolvendo a versão melhorada ou superior daquilo que você acabou de criar). Por isso é comum relacionar a inovação com a tecnologia e este assunto muitas vezes leva o pensamento para a robótica, inteligência artificial, realidade aumentada, impressoras 4D, computadores quânticos, materiais plasmônicos e por aí vai.
Mas há um ponto central sobre as inovações que precisa ser destacado nesse mundo de crescimento exponencial: inovação diz respeito especialmente à mudança de percepção, uma nova visão sobre as coisas, uma mudança de mindset. Certamente a tecnologia faz parte do processo de inovação, mas quem inova são as pessoas e suas mentes abertas e brilhantes.
No meio empresarial, a qualidade deixou de ser o importante diferencial competitivo (podemos dizer que hoje, oferecer um produto de qualidade é obrigação de todas as empresas – e é uma necessidade para manter-se atuante no mercado). A inovação passou a ser um novo diferencial, é a regra a ser seguida para se “manter no jogo”.
Na esfera pública, não é diferente. Atrasa-se quem pensa que esse tempo demorará a chegar “aqui na minha instituição”: as mudanças já estão acontecendo com muita rapidez e serão melhores e mais bem aproveitadas por aqueles que já se convenceram a participar dos processos de inovações e mudanças, especialmente no que diz respeito à forma de pensar e agir.
Mudanças sociais, políticas e econômicas que marcam o cenário mundial estão levando os governos a enfrentar diversas situações e problemas complexos que precisam de um novo olhar para suas resoluções, uma nova e moderna mentalidade de gestão pública capaz de produzir políticas públicas, boas práticas e serviços necessariamente inovadores para a população.
Enquanto alguns gestores insistem em continuar fazendo o que sempre foi feito, outros já despertaram para a necessidade de fazer melhor e diferente. Segundo o Manual de Oslo (que contém diretrizes para a coleta e a interpretação de dados sobre a inovação nos países afiliados à OCDE), qualquer setor da atividade econômica pode receber inovação, incluindo o serviço público – “a inovação não só pode acontecer como também é importante para o setor público”.
Para inovar também são necessárias algumas reformulações trabalhosas e que exigirão energia adicional dos agentes envolvidos com o movimento transformador. Muitas vezes, as mudanças envolvem interesses diversificados e até divergentes e isso gera resistências ao ato de inovação. Sem destacar as complexidades da burocracia e a escassez de recursos públicos, a alta rotatividade dos gestores e as mudanças das equipes técnicas também não favorecem o panorama de inovação. Cada mudança de gestão acarreta adaptações, recomeços e até abandono de projetos preexistentes devido às novas políticas de governo. Isso precisa mudar e evoluir para o pensamento estratégico que vai além da política/gestão do momento.
Ao estabelecer um projeto para o futuro da cidade, com um planejamento de longo prazo, hoje Santa Rita do Sapucaí colhe frutos e avanços relacionados às decisões iniciadas há mais de 40 anos por gestores e empresários visionários, abertos e dispostos à mudança. Trata-se de um passado bem planejado que agora está projetando resultados positivos no futuro.
A agenda de inovação deverá ocupar cada vez mais o centro da estratégia de governo para direcionar o eixo das soluções exigidas pelos desafios do setor público. Os agentes públicos deverão ser mais e mais empoderados como protagonistas desse processo.
É por isso que para estimular a inovação, faz-se inevitável a mudança de postura e cultura institucionais. O fortalecimento do ambiente inovador depende diretamente do envolvimento do agente público – ele é o canal de transformação.
Pesquisa, investimentos e atualização da legislação também são necessários para impulsionar o movimento inovador. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), somando os gastos do setor Público e do setor empresarial, o Brasil investe apenas 1,27% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em desenvolvimento e pesquisa (divulgados pelo IBGE, o PIB de 2018 foi de R$ 6,8 trilhões; no segundo trimestre de 2019, o valor ficou em R$ 1.780,3 bilhões).
Atualmente o Brasil (que não obteve classificação no ano passado) voltou para a 45ª colocação na lista de países mais inovadores do mundo, conforme dados do Índice de Inovação Bloomberg de 2019. Em seu sétimo ano, o índice analisou inúmeros critérios com base em sete métricas, as quais incluem gastos com pesquisa e desenvolvimento, capacidade de fabricação e concentração de empresas públicas de alta tecnologia. Estas são as nações mais inovadoras do mundo, lideradas em 2019 pela Coréia do Sul e Alemanha (China e Israel subiram várias posições):[5]
Mas os números relacionados aos investimentos em Santa Rita do Sapucaí são diferentes: 9% do faturamento das empresas são investidos em pesquisa e desenvolvimento de produtos destinados a áreas de telecomunicações, informática, automação industrial e segurança, por exemplo, e toda a cadeia operacional está localizada na cidade ou em seu entorno. Apoiada por consórcios, projetos setoriais e integrados de fomento, a cidade usufrui de um intensivo programa de internacionalização e aumento de competitividade das empresas locais. Para se ter uma ideia sobre esse foco, em 2015 seu volume de exportações chegou a 47 milhões de dólares.
E a cidade encontra-se em vias de tornar-se uma cidade inteligente, devido a uma parceria firmada entre o Inatel, o BNDES e as empresas locais de tecnologia, que irão implantar diversas soluções destinadas à segurança, rastreamento de veículos e iluminação inteligente via soluções de IoT (Internet das Coisas).
Com uma visão de futuro bem alicerçada e investindo fortemente em educação, há mais de 40 anos o Vale da Eletrônica segue firme em seu fortalecido propósito de concretizar, cada vez mais, um plano de governo de longo prazo para a obtenção de resultados igualmente duradouros que impactem e tragam prosperidade para várias gerações, tornando-se um exemplo de crescimento e inovação para o Brasil.
Modelos organizacionais que privilegiaram a troca e a geração de conhecimento, parcerias e estratégias alinhadas à visão de longo prazo da Administração, tudo somado à força da “base tríplice” composta das boas relações existentes entre o governo (com seus incentivos fiscais), academia e indústria, fizeram de Santa Rita do Sapucaí um cenário propício para a inovação e uma prova de que o investimento em educação pode transformar a realidade, a vida e o futuro das pessoas impactando totalmente os rumos de uma cidade inteira.
Rogério Corrêa – Advogado e consultor especialista em Licitações e Contratos Administrativos, coordenador técnico de eventos, cursos e treinamentos voltados para o setor público/compras públicas, autor e coautor de livros e vários artigos jurídicos.
Referências:
[1] A título de curiosidade, sobre a importância desta escola, no final dos anos 50, quando a cidade de Santa Rita do Sapucaí tinha apenas 9 mil habitantes, a ETE contava com 1.300 alunos.
[2] Disponível em: <http://cidadecriativacidadefeliz.com.br/>. Acesso em: 05/11/19.
[3] Disponível em: <http://atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/santa-rita-do-sapucai_mg>. Acesso em: 05/11/19.
[4] Disponível em: <https://www.otempo.com.br/interessa/tecnologia-e-games/vale-da-eletronica-do-brasil-esta-em-santa-rita-do-sapucai-1.1554873>. Acesso em: 05/11/19.
[5] Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-01-22/germany-nearly-catches-korea-as-innovation-champ-u-s-rebounds>. Acesso em: 05/11/19.