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Inexigibilidade de serviços jurídicos na Administração Municipal
- 24 de julho de 2020
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Por José Roberto Tiossi Junior
Diante de intepretações extremadas que tratam o instituto licitatório sempre como regra, a contratação de serviços jurídicos por parte da Administração Pública vem sendo alvo de intenso debate.
A Constituição Federal não deixa dúvidas ao dispor que a licitação é regra apenas nos casos em que for possível assegurar igualdade de condições entre os concorrentes, ou seja, nas demais situações em que for inviável a fixação de parâmetros isonômicos, a licitação deixa de ser regra e vira exceção, abrindo espaço para as contratações diretas disciplinadas por lei.
Esse mito criado sobre a obrigatoriedade de licitar, ocasiona grave instabilidade jurídica, deixando o gestor público refém de um controle desmoderado e compulsivo, desencadeado quase sempre por um resultado interpretativo opaco.
Certo é, que a extensão continental do território nacional, contribuem para consideráveis diferenças sociais, econômicas e culturais em todo o Brasil, aliado a pluralidade de normas que disciplinam matérias em comum, formando um cenário caótico, eivado de dúvidas, insegurança e letargia jurídica.
No âmbito municipal, o problema é ainda maior, visto que grande parte dos municípios brasileiros carecem de estrutura jurídica adequada. Muitos sequer possuem em sua estrutura orgânica, cargo ou emprego público de procurador jurídico. A incapacidade financeira municipal é outro fator que inviabiliza gastos com pessoal em virtude de limites previstos para tal despesa, culminando muitas vezes em uma carência de material humano para satisfazer as demandas da sociedade. Dessa forma, o gestor público se vê obrigado a recorrer a terceiros em prol do interesse público, para atender não apenas as demandas complexas, mas até aquelas rotineiras do ente administrativo, evitando assim, um caos administrativo e uma morosidade ainda maior na prestação dos serviços públicos.
A própria Constituição Federal de 1988 é omissa em seus artigos 131 e 132 quanto a Procuradoria Municipal, tratando apenas da Advocacia Pública da União, Estados e Distrito Federal.
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência que desobriga os municípios de criarem órgãos da Advocacia Pública, em razão da ausência de previsão na Constituição Federal da figura da advocacia publica municipal, nos termos do recurso extraordinário nº 225.777, Pleno, redator do acórdão ministro Dias Toffoli, publicado no Diário da Justiça de 29 de agosto de 2011; recurso extraordinário nº 690.765, relator ministro Ricardo Lewandowski, com decisão veiculada no Diário da Justiça de 12 de agosto de 2014; agravo regimental no recurso extraordinário nº 893.694, Segunda Turma, relator ministro Celso de Mello, com acórdão publicado no Diário da Justiça de 17 de novembro de 2016.
Desta feita, o interesse público é a chancela para que ocorra a terceirização dos serviços jurídicos, independente da causa, cabendo inclusive nas seguintes hipóteses: 1) prazo para finalização de um concurso público para procurador jurídico; 2) elaboração de norma legislativa que cria o cargo ou emprego público com a devida aprovação pelo Poder Legislativo; 3) demandas incompatíveis com a estrutura da procuradoria jurídica, inclusive para serviços rotineiros 4) serviços complexos e pontuais.
Não há qualquer possibilidade de dividir os serviços advocatícios em dois grupos formados pelo serviço técnico especializado e pelo serviço comum e trivial, por possuírem natureza singular, personalíssima e intelectual.
Significa dizer que, independente da existência de complexidade na matéria, em todos os casos em que houver necessidade de contratar um advogado, o afastamento da licitação será obrigatório. Porém, nem todo advogado encontra-se apto para ser contratado diretamente pelo Poder Público. A ciência jurídica é ampla e inesgotável, com diversas áreas de atuação. A multiplicidade de normas, aliado a constante evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial exige que o profissional se especialize em determinado ramo do direito e mantenha-se atualizado, para que consiga atuar com dinamismo e propriedade diante dos problemas da contemporaneidade.
Os serviços advocatícios não se limitam nos serviços de patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas, previstos no inciso V do artigo 13 da Lei 8.666/93, podendo também ser encontrado nos incisos II e III com a elaboração de pareceres e na realização de consultorias ou assessorias, além das demais situações em que a natureza intelectual não puder ser definida, julgada e comparada objetivamente.
Pois bem, licitar não significa garantir a probidade administrativa em absoluto. Existem casos em que a probidade administrativa só é alcançada com a contratação direta, sob pena de configurar improbidade administrativa a instauração indevida de processo licitatório.
Trata-se de controverso tema que necessita uma profunda reflexão, posto que os atuais métodos arcaicos de contratação, vem causando nefastas consequências ao Poder Público. Historicamente as palavras “operação” e “corrupção” estão quase sempre vinculadas com “licitação”. As contratações públicas devem ser repensadas, ao passo que a inexigibilidade de licitação pode ser uma grande alternativa para gerar eficiência e evitar fraudes, principalmente na contratação de advogados, posto que para satisfazer o interesse público não significa instaurar sempre a licitação, mas realizá-la apenas quando for admissível.
Há uma impossibilidade técnica e ética de contratar advogados através de processo licitatório, por configurar um escancarado método para aviltar a advocacia, transformando-a em um serviço banal, corriqueiro e até mesmo medíocre, onde o menor preço é o principal critério para a contratação.
O serviço advocatício tem na singularidade a sua essência, por possuir natureza personalíssima e intelectual, decorrente de conhecimentos individuais que foram absorvidos pelo profissional ao longo de sua vida. A formação acadêmica, as experiências anteriores, os aspectos culturais, econômicos, éticos e morais da sociedade na qual está inserido torna cada profissional único, com habilidades e capacidades técnicas diferenciadas para lidar com as demandas jurídicas que lhe são apresentadas.
A singularidade encontra-se no cerne dos problemas enfrentados pela Administração Pública nas contratações de serviços técnicos especializados por inexigibilidade de licitação em razão de sua imprecisa definição. O Termo “natureza singular” previsto na Lei 8.666/93 (Lei Geral de Licitações) já foi excluído da Lei 13.303/16 (Lei das Estatais) demonstrando um avanço legislativo sem precedentes. Da mesma forma, o texto-base do PL 1292/95 que trata da Nova Lei de Licitações e que já foi aprovado pela Câmara dos Deputados, também excluiu a terminologia natureza singular de sua redação.
Por possuir um conceito relativo, muitos chegam a confundir singularidade com unicidade, dando a entender que para fins de contratação pública, o termo singular equivaleria a único, não podendo existir outros profissionais ou bancas de advogados para prestarem o serviço, ou que o serviço deveria ser inédito, complexo e incomum. Na verdade, tal terminologia se refere ao serviço que não pode ser definido, comparado e julgado objetivamente.
No Acórdão 2762/2011 Plenário, o TCU revela que não é a complexidade da demanda que determina a singularidade, ao passo que no Acórdão 2832/2014 também do Plenário, o TCU deixa claro que singular é o objeto que impede que a Administração escolha o prestador do serviço a partir de critérios objetivos de qualificação inerentes ao processo de licitação.
O advogado sempre prestará serviço técnico especializado, visto que a advocacia é privativa dos bacharéis em direito e dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.
No Acórdão AC01 – 1214/2018 Primeira Câmara, o TCE/MS julgou regular a contratação por inexigibilidade de escritório de advocacia para serviços de assessoramento e consultoria Jurídica em uma prefeitura, nos seguintes termos: “A singularidade dos serviços prestados pelo escritório contratado está fundamentada na capacitação profissional dos seus advogados, sendo inviável escolher o melhor profissional para prestar serviços de natureza intelectual por meio de licitação, notadamente porque tal mensuração não se funda em critérios objetivos”.
Por conseguinte, outro importante elemento para chancelar a contratação direta de advogado, é a confiança, decorrente da terminologia “inferir” que está prevista na legislação, ou seja, a notória especialidade gera confiança. A legislação exige a presença de um notório especialista que inspire confiança na execução do serviço, não pode ser contratado qualquer profissional.
O advogado deve empenhar-se nas causas confiadas ao seu patrocínio, se aprimorando no culto dos princípios éticos e no domínio da ciência jurídica, de modo a tornar-se merecedor da confiança do cliente e da sociedade como um todo, pelos atributos intelectuais e pela probidade pessoal. O novo Código de Ética e Disciplina da OAB traz em seu art. 10 a confiança recíproca como o elemento base para a relação entre advogado e cliente.
Dessa forma, a notória especialização não é a causa da inexigibilidade, mas condição para selecionar o advogado ou banca que inspiram mais confiança na execução do serviço técnico especializado.
O Estatuto da OAB e o Código de Ética trazem em inúmeros artigos a preocupação com o aviltamento de honorários, além de vedarem a captação de clientela e a mercantilização da profissão, devendo os advogados tomarem sempre por base os valores fixados na Tabela de Honorários.
O Conselho Federal da OAB editou em 17.09.2012, a Súmula 04/2012/COP atestando a inviabilidade de competição entre advogados em uma licitação. O Supremo Tribunal Federal (STF, HC no. 86.198-9, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 29.06.2007) também reconheceu a legalidade na inexigibilidade de licitação para contratação de serviços jurídicos, ressaltando dentre os inúmeros aspectos, a incompatibilidade de disputa em um certame com as limitações éticas e legais da profissão.
Acontece que diante dos constantes abusos, o próprio Conselho Nacional do Ministério Público emitiu recomendação aos Membros do Ministério Público no tocante a contratação de advogados por inexigibilidade de licitação nos seguintes termos:
RECOMENDAÇÃO Nº 36, DE 14 DE JUNHO DE 2016.
Art. 1º A contratação direta de advogado ou escritório de advocacia por ente público, por inexigibilidade de licitação, por si só, não constitui ato ilícito ou improbo, pelo que recomenda aos membros do Ministério Público que, caso entenda irregular a contratação, descreva na eventual ação a ser proposta o descumprimento dos requisitos da Lei de Licitação. Brasília-DF, 14 de junho de 2016. RODRIGO JANOT MONTEIRO DE BARROS Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público
As complexas necessidades da hodiernidade, exigem que alguns dogmas sejam superados e analisados com uma boa dose de moderação, atentando-se principalmente ao conteúdo e a indisponibilidade do interesse público sobre o privado, de modo que a classe dos advogados possa ser respeitada por tudo aquilo que representa para o Brasil, eliminando qualquer possibilidade de violação as prerrogativas profissionais, visto que o advogado trabalha em defesa da ordem jurídica do Estado democrático de direito, sendo indispensável para à administração da justiça.
Neste caso, ampliar o sentido da norma para além do contido em sua letra, é contrariar a mens legis e retroagir todo o avanço legislativo e dinamismo que as contratações públicas exigem, em especial as diretas realizadas por advogados mediante inexigibilidade de licitação na Administração Pública municipal.
José Roberto Tiossi Junior é Advogado, Mestre em Direito. Especialista em Direito Público e Direito Tributário, Professor de cursos de Pós-Graduação na área de Direito Administrativo, Fundador do Portal Licitações Municipais.