O grito mudo dos setores de contratações dos órgãos da Administração Pública
- 1 de dezembro de 2023
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
Estrangulamento: ato de pressionar que interrompe o fluxo que oxigena a máquina, podendo levar à inconsciência e até à morte.
A palavra estrangulamento é empregada habitualmente nos órgãos da administração pública para indicar que as unidades, em especial as de compras e de licitações, estão em seus limites de pessoal e de carga de trabalho.
A pressão exercida hodiernamente nos setores de contratações interrompe o fluxo regular dos processos, no contexto de que tudo é urgente, nas nossas famosas urgências fabricadas. [1] Sem oxigenação suficiente, a inconsciência é inevitável.
Por inconsciência, refiro-me aos servidores emocionalmente hesitantes, uma vez que, mesmo diante de uma carga excessiva de demandas, continuam entregando os serviços e processos de contratações, em razão do nível de comprometimento que possuem com a instituição.
A pergunta é: a que custo?
Certamente a um custo pessoal elevado, considerando a falta de tempo para a família e para o lazer.
Do ponto de vista profissional, em uma conjuntura que envolve o receio de errar e o nível de comprometimento, os servidores entregam os trabalhos cientes de que poderiam ter feito melhor, contribuindo para a perda de confiança e qualidade no que se produz, o que os expõe a riscos de responsabilização direta:
“se eu tivesse tempo, eu abordaria melhor o tópico…”
“se eu tivesse tempo eu indicaria a mudança da solução…”
“não toquei no assunto para não emperrar o processo…”
Por morte, refiro-me ao turnover institucional de servidores altamente capacitados sem interesse e com esgotamento emocional para trabalhar nos setores de licitações e contratos. Quando há um turnover muito acentuado, não há perda somente na quantidade de servidores, há, outrossim, perda de experiência e de compreensão do processo de trabalho que vive eternos recomeços.
Muitos servidores hoje instruem os processos de contratação não para atingir objetivos, mas para não serem responsabilizados, o que pode acarretar um processo conforme (legal), todavia, sem efetividade e eficiência.
Transferência de responsabilidade no lugar de integração.
Em caminhadas pelo Brasil nas capacitações em Licitações e Contratos, observo que os servidores estão sedentos de informação e muito mais que isso, as salas de aula se tornam, frequentemente, confessionários onde servidores desabafam a falta de estrutura, de políticas em contratações e de pessoal. Discentes buscam, no professor, uma resposta para os problemas de gestão pública. Na minha última turma, o cenário não foi diferente.
Com a publicação da Lei n. 14.133, de abril de 2021, o cenário desestrutural se potencializa e a pergunta agora é: como implementar segregação de funções e criar controles internos administrativos, sem servidores?
Na ausência de respostas objetivas, o desânimo em razão das diretrizes do novo regime jurídico é inevitável.
O que fazer? É possível que o fluxo, outrora interrompido, seja restabelecido?
Por parte da administração: a Gestão por Competência.
A Gestão por competência é o instrumento de Governança mais necessário nesse cenário. Alinhar as competências dos servidores e a capacidade de entrega dos setores de contratações aos objetivos institucionais é fundamental. Precisamos aprimorar a nossa capacidade de planejar as compras, por exemplo, mas precisamos avaliar se temos capacidade de entregar todo esse planejamento.
A habilidade dos gestores imediatos das áreas administrativas para lidar com o turnover elevado, com a pressão e com o reduzido quadro de servidores, nunca foi tão almejada.
Lado mesmo, o fortalecimento e o reconhecimento dos servidores, por meio de prática de gestão por desempenho, para que se tornem futuros gestores capazes de analisar problemas de forma objetiva e identificar soluções com decisões fundamentadas, é o caminho mais acertado para a oxigenação da máquina pública.
Dito isso, outra pergunta fica estabelecida quase que de forma automática: há espaço na minha organização para que os servidores das áreas operacionais ocupem funções na alta gestão?
É preciso renovar as expectativas…
A valorização dos servidores é condição para a retenção dos talentos nos setores administrativos. A atração de novos depende da implantação de várias ações, que precisam ser implementadas em todos os níveis da instituição e não somente pela alta administração.
A exemplo, em meados de 2021 iniciei o projeto Day(dy), que significa o dia da dinâmica, nas seções da Subsecretaria de compras, licitações, contratos, material e patrimônio, setores com o quadro de servidores reduzido.
O projeto reflete uma nova modelagem de capacitação baseada na observação de comportamentos, cujas dinâmicas (capacitações) possibilitam a avaliação dos perfis e habilidades dos agentes públicos envolvidos no macroprocesso de contratações.
Na primeira dinâmica fomos todos até um gamer (corporativo), onde ficamos em uma sala interativa, todos entrelaçados, cujo objetivo era desvendar os problemas (enigmas) juntos, em até 1 hora (fortalecendo o trabalho em equipe).
Na segunda dinâmica, proposta pela equipe de pregoeiros, fizemos um campo minado onde os chefes de seção (setor) ficaram com os olhos cerrados e precisaram completar a jornada (caminho) com os comandos dos seus servidores (trabalhando a confiança).
O projeto trouxe engajamento nas equipes e oportunizou que os próprios servidores desenvolvessem suas competências. Em outras palavras, não adianta exigir que uma equipe tenha confiança em seu líder ou que um servidor tenha expertise em resolução de problemas, se não lhe for oferecida nenhuma oportunidade prática de desenvolver essa habilidade.
Se de um lado a estrutura administrativa está estrangulada, no outro extremo, na alta administração, muitas vezes não há, sequer, conhecimento do que acontece nos setores. A alta administração avalia o resultado que, apesar de tudo, é entregue. O custo desse resultado, quem observa, como padrão, é o gestor intermediário que, muitas vezes, infelizmente, não repassa as carências e as desestruturas à alta administração com receio de transmitir insegurança. Lado outro, não consegue resolver os problemas estruturais.
Calma, quais problemas, se não há problemas?
Os setores administrativos estão em alerta, mas não estão sendo ouvidos pois, na verdade, o diálogo é o caminho para a escuta.
É preciso construir esse diálogo entre as áreas operacionais e a alta administração. Nesse caminho construtivo há responsabilidades mútuas. Se por parte da alta administração cabe implementar Gestão por Competência, por parte dos servidores cabe identificar os objetivos do órgão e pautar seus trabalhos buscando atingi-los.
Sabemos onde está o Planejamento estratégico ou o PCA do órgão no sítio eletrônico?
Tivemos notícia do PCA somente quando me foi demandada a elaboração do DFD?
Com a iminência de se tornar exclusiva a Lei n. 14.133/2021, tivemos curiosidade de entrar no PNCP?
Reflexões que são necessárias.
Nem todo estrangulamento leva ao fim, mas se não for urgentemente cessado, acumula sequelas sociais suportadas por todos.
Luana Carvalho é instrutora, ministrando curso na área de Licitações e Contratos para toda da administração pública, em especial aos órgãos superiores; pelo Centro de Estudos Judiciários – CEJ/JF e Escola Nacional de formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM – Educa ENFAM); Professora Universitária: Direito Penal, Comercial, Civil, Tributário e Administrativo; Servidora Pública de carreira do Conselho da Justiça Federal, atuando como Subsecretária de Compras Licitações e Contratos, como Assessora Jurídica, Assessora Socioambiental, Assessora Técnica da Secretaria de Administração, Auditoria Interna na área de Licitações e Contratos e na Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência – TNU; Membro do Núcleo Técnico da Companhia Brasileira de Governança – CBG. Membro do Comitê Gestor da Política de Governança das Contratações do Judiciário– CNJ; Membro do então Comitê Técnico de Controle Interno do Judiciário; Fundadora do projeto “de bombeiro a pregoeiro” (Governança). Fundadora do projeto Day-DY(namics), que impulsiona a retenção de talentos nas áreas administrativas dos órgãos da administração pública, com análise de perfil comportamental e habilidades; Coordenadora Científica e idealizadora do Simpósio sobre licitações e contratos da Justiça Federal, com a edição de enunciados que servem de base doutrinária para auxílio às atividades desenvolvidas por servidores que atuam no macroprocesso de contratações; Consultora técnica em licitações, contratos e conta-depósito vinculada; Autora de artigos, notas técnicas, minutas de normativos, etc. Auditora: por 08 anos (iniciativa privada); Graduação: Direito; Pós-Graduação: Direito Público-Tributário; MBA: Gestão Pública;
[1] Urgências fabricadas: produzidas internamente pela morosidade