Pandemia de Covid-19 e o equilíbrio econômico-financeiro das concessões
- 28 de abril de 2020
- Posted by: Inove
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1) Objeto
As circunstâncias extraordinárias relacionadas com a Covid-19 afetam diretamente os contratos de concessão. Há uma multiplicidade de fatores que se conjugam, alguns derivados dos fatos, outros das medidas estatais adotadas para fazer frente a eles. A amplitude assumida pela crise e a velocidade com que se alteram as condições impõem às concessionárias condutas incontornáveis. No âmbito dos contratos de concessão, a situação implica o rompimento da equação econômico-financeira e o direito à sua recomposição.
2) Contexto
A propagação da Covid-19 assumiu dimensão pública sem precedentes modernos. Tal como em ocasiões anteriores, como o surto de H1N1 em 2009, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou seu caráter de pandemia em 11 de março de 2020.
Uma conjugação de circunstâncias possivelmente relacionadas com a doença em si, a facilidade tecnológica atual na disseminação de informações e as características demográficas da população atingida tornaram-na um fenômeno de gravidade inquestionável.
A percepção de insegurança em face do possível contágio e suas consequências provocou reações intensas de governos em todo o mundo. No Brasil, surgiram atos estatais de várias naturezas e efeitos.
A Lei 13.979, depois alterada pelas MPs nº 926, 927 e 951, e regulamentada pelos Decretos 10.282 e 10.288, pretendeu coordenar os esforços do Poder Público na reação à crise. Mas competências públicas vêm sendo invocadas também por estados e municípios, agências reguladoras e outros entes, de modo legítimo e proporcional ou não, para adotar medidas de contenção do contágio, de quarentena ou de garantia de estruturas mínimas de saúde. Em julgamento de liminar na ADI 6341, em 15.4.2020, embora reafirmando a validade da Lei nº 13.979, o STF assegurou o exercício da competência concorrente por outros entes da Federação. O resultado do julgamento foi divulgado assim pelo STF:
“O Tribunal, por maioria, referendou a medida cautelar deferida pelo Ministro Marco Aurélio (Relator), acrescida de interpretação conforme à Constituição ao § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979, a fim de explicitar que, preservada a atribuição de cada esfera de governo, nos termos do inciso I do art. 198 da Constituição, o Presidente da República poderá dispor, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais, vencidos, neste ponto, o Ministro Relator e o Ministro Dias Toffoli (Presidente), e, em parte, quanto à interpretação conforme à letra b do inciso VI do art. 3º, os Ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin” (STF, ADI 6341/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 15.04.2020)
Qualquer que seja a explicação para a origem da crise, seus efeitos atuais e futuros são reais, graves e possivelmente duradouros, resultantes de circunstâncias extraordinárias, imprevisíveis, alheias ao controle dos particulares e em grande medida vinculadas a iniciativas estatais.
3) Matriz contratual de risco
Cada contrato de concessão, implícita ou explicitamente, contém uma alocação de riscos. A alocação ideal (ótima) é a que atribui o risco à parte que tem melhores condições de gerenciá-lo.
Bem por isso, os riscos ligados à força maior, ao caso fortuito e aos chamados fato do príncipe ou fato da administração são tipicamente assumidos pelo Poder Público.
Embora a legislação sobre parcerias público-privadas (Lei 11.079) aluda a possíveis ajustes contratuais distintos quanto a riscos desta natureza, geralmente se reconhece que atribuir riscos dessa natureza à concessionária implica oneração inadequada do poder concedente e, por conseguinte, da coletividade.
Ainda assim, a análise acerca da equação econômico-financeira não prescinde do exame da alocação de riscos de cada contrato. Embora grave e incomum, a crise em curso, suas causas e seus efeitos se reconduzem aos paradigmas próprios do regime jurídico da concessão, notadamente os de força maior, caso fortuito e fato do príncipe – todos fatores que implicam a quebra da equação contratual das concessões. Esta premissa foi adotada no Parecer nº 261/2020/CONJUR-MINFRA/CGU/AGU, aprovado em 16.4.2020, segundo o qual a “pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2) pode ser classificada como evento de ‘força maior’ ou ‘caso fortuito’, caracterizando ‘álea extraordinária’ para fins de aplicação da teoria da imprevisão e justificar o reequilíbrio de contratos de concessão de infraestrutura de transportes” – com as ressalvas feitas pelo próprio Parecer: “é possível que algum contrato tenha estabelecido uma alocação de riscos diferente da divisão tradicional entre riscos ordinários e extraordinários” e “é necessário avaliar se a pandemia teve efetivo impacto sobre as receitas ou despesas do concessionário”. O Parecer foi objeto de notícia do jornal Valor Econômico em 23.4.2020, disponível em <https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/04/23/agu-da-aval-a-reequilibrio-de-concessoes.ghtml>, acesso em: 23.4.2020.
Desse modo, o enquadramento detalhado de cada situação depende não só da circunstância concreta ocorrida, mas também das previsões contratuais específicas de cada caso.
A magnitude e o caráter sistêmico da crise, cujos impactos se produzem em maior ou menor grau em todos os serviços públicos e contratações administrativas, não afetam a premissa de que circunstâncias imprevisíveis ou de consequências incalculáveis como as verificadas na crise em curso são fatores típicos de desequilíbrio contratual.
A provável dificuldade concreta na efetivação prática das oportunas medidas de reequilíbrio não altera a alocação contratual de riscos nem suprime os efeitos de circunstâncias que, por definição, são alheias ao controle do particular. Ela impõe criatividade e flexibilidade nas soluções, que deverão ser compatíveis com a severidade da situação existente, e exige atenção às múltiplas facetas das alterações de contexto produzidas pela pandemia, pelos atos praticados para sua contenção e pelas profundas transformações sociais que podem derivar dessa experiência inédita. Mas não altera a posição jurídica da concessionária.
4) Circunstâncias extraordinárias
Em linhas gerais, situações caracterizadas como caso fortuito, força maior ou fato do príncipe provocam danos que não se enquadram nos riscos assumidos pela concessionária.
O art. 65, II, ‘d’, da Lei 8.666 estabelece que é cabível o reequilíbrio econômico-financeiro “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe, configurando álea econômica extraordinária e extracontratual”.
Além disso, o art. 9º da Lei 8.987 permite o reequilíbrio dos contratos de concessão (i) quando há a criação de encargos que provocam impacto na equação econômico-financeira (§ 3º) ou (ii) quando há uma alteração unilateral que afete o equilíbrio (§ 4º).
A necessidade ou mesmo a proporcionalidade dos atos estatais adotados em resposta à crise não descaracterizam a quebra da equação contratual.
O art. 3º, § 1º, da Lei 13.979 impõe que as medidas excepcionais autorizadas no diploma legal “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégias em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública”.
Mesmo se cumpridos esses rigorosos critérios, o que possivelmente não corresponde à realidade em muitas situações concretas, a interferência estatal sobre a economia da concessão produz o direito à recomposição de seu equilíbrio original.
5) A pandemia e seu impacto sobre os serviços concedidos
No caso da Covid-19, trata-se de pandemia reconhecida e declarada formalmente pela Organização Mundial da Saúde. Seus efeitos no Brasil, derivados da própria doença ou principalmente da reação estatal e social a ela, provocaram a declaração formal do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional em 20 de março de 2020.
Trata-se, portanto, de situação de gravidade peculiar, que não pode ser enquadrada como caracterizadora de risco ordinário. A crise instaurada tem diversos efeitos nocivos em face das concessionárias. Atos estatais podem eles próprios contribuir para gerar efeitos que afetam os contratos de modo direto e com grande intensidade. Mas os impactos sobre a concessão transcendem as consequências diretas de atos estatais e podem resultar de condutas baseadas em uma percepção social de insegurança ou de medidas preventivas ou corretivas que as concessionárias se vejam compelidas a adotar, por uma variedade de razões.
Dois exemplos ilustram bem essas afirmações.
Cogite-se de eventual recusa de funcionários terceirizados em realizar serviços instrumentais aos serviços objeto da concessão. Essa recusa pode decorrer de algum ato estatal, como os diversos atos de entes políticos variados que vêm impondo isolamento, bloqueando cidades, vedando o transporte de pessoas, fechando atividades comerciais ou estabelecendo limitações de outra natureza. Ou pode ser espontânea, derivada do pânico instalado na população por força da sensação de insegurança e das recomendações sanitárias e médicas.
Dependendo do que ocorrer, as concessionárias não terão alternativa para enfrentar o problema. Deixará de ser prestado o serviço teoricamente adequado, por circunstância excepcional, extraordinária e alheia ao controle das concessionárias.
O segundo exemplo consiste na impossibilidade de aquisição de insumos necessários à execução de suas atividades. A fabricação e o transporte dos produtos podem ser afetados por razões variadas, inclusive proibições estatais diretas, e isso acabar prejudicando a própria prestação dos serviços concedidos. Ou haver a instituição de limitações à utilização dos serviços. Trata-se de circunstâncias aptas a prejudicar as atividades sem que exista alternativa para que a impossibilidade ou dificuldade sejam contornadas ou resolvidas.
Ou seja, por mais que as concessionárias se esforcem em minimizar problemas e mitigar prejuízos, certas intercorrências serão incontornáveis.
6) Impacto econômico sobre a concessão
Além do impedimento – por atos estatais diretos ou por força de outros fatos – à realização de certas atividades, poderá haver outras decorrências que afetem a economia do contrato e produzam o direito ao reequilíbrio.
Uma hipótese é o aumento abrupto dos preços de certos produtos e insumos necessários à prestação dos serviços. Essa circunstância pode não impedir os serviços, mas ocasionar uma elevação de custos em razão de caso fortuito ou de força maior, ou derivada dos próprios atos estatais de contenção da propagação do vírus. Quando menos, seria aplicável a teoria da imprevisão.
Outra manifestação de impacto econômico é a que resulta da supressão ou redução radical da demanda em face desse conjunto de fatores. Em alguns setores, o corte de demanda é consequência direta da proibição da prestação dos serviços. Em outros, os serviços podem até estar disponíveis e não ter sua prestação vedada, mas as medidas de isolamento social impedem jurídica ou praticamente que os usuários os utilizem. A falta de demanda produz impacto direto na receita tarifária e um efeito indireto sobre receitas acessórias, exploração comercial de infraestrutura e uma variedade de circunstâncias. É evidente que as regras contratuais que atribuem à concessionária o risco de demanda não se aplicam nesse contexto.
Esta segunda situação foi objeto de decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em pedido de suspensão de liminar formulado por concessionária de serviços de transporte coletivo (SLS 2696, j. 24.4.2020). Trata-se da primeira decisão do STJ sobre o tema, relacionando a pandemia da Covid-19 com a equação econômico-financeira das concessões de serviço público.
O caso dizia respeito a liminar deferida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro determinando que a concessionária mantivesse em funcionamento a integralidade de sua frota, sob pena de multa diária. Em seu pedido de suspensão, a concessionária demonstrou que o movimento atual de passageiros era mínimo e não justificava senão a oferta, quando muito, de uma pequena parcela dos serviços normalmente prestados. Também demonstrou que a determinação de manutenção de serviços tornados inúteis e economicamente inviáveis, sem providências compensatórias efetivas e imediatas, implicava a quebra da equação econômico-financeira da concessão e o risco de frustração absoluta da disponibilidade de qualquer serviço local de transporte de passageiros.
Em sua decisão de suspensão, o Ministro Presidente do STJ consignou o seguinte:
“Na espécie, foram comprovados os efeitos deletérios da decisão liminar impugnada, sobretudo no que se refere à ordem e à segurança públicas na prestação do serviço de transporte público à coletividade do Município de Araruama e às finanças da municipalidade.
Com efeito, em razão da pandemia, registra-se em todo o território nacional acentuada redução do número de pessoas que fazem uso do transporte público, o que implica imediata e brutal queda da receita aferida pelas concessionárias, de modo que proibir a readequação da logística referente à prestação do referido serviço público implicará desequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão, passivo que poderá eventualmente ser cobrado do próprio erário municipal.
Ademais, é inquestionável o interesse público envolvido na necessidade de resguardar a continuidade e a qualidade da prestação de serviço essencial à população, o que, neste momento, depende da capacidade da empresa concessionária de reorganizar de forma eficaz a execução de percursos e horários, resguardado o interesse dos usuários do serviço público em questão”,
A decisão configura precedente fundamental acerca da preservação do equilíbrio das concessões no contexto da pandemia. Reconhece o efeito da queda de demanda sobre a viabilidade da manutenção da prestação dos serviços e a necessidade de sua readequação diante da nova realidade. Afirma textualmente que a vedação de tais modificações necessárias acarreta potencial quebra do equilíbrio contratual. Admite também que, diante da excepcionalidade das circunstâncias atuais, os ajustes impostos pelo desaparecimento ou forte redução da demanda podem inclusive ser adotados pela própria concessionária, no exercício da gestão do serviço público delegado e em resposta ao contexto grave e dinâmico atualmente verificado.
Os efeitos que a pandemia e as medidas para sua contenção produzem sobre a demanda dos serviços delegados podem assumir dimensão e natureza tão profundas e permanentes que se torna definitivo o seu impacto sobre a concessão, exigindo providências de revisão das próprias bases da contratação. A amplitude da crise e de suas consequências, conforme o que se venha a apurar em cada setor e cada concessão, pode impor e justificar a redefinição ampla das características da concessão para o futuro, a fim de assegurar a sua viabilidade técnica e econômica. A constatação da necessidade de uma possível revisão profunda das características da concessão não suprime direitos da concessionária nem altera a alocação contratual de riscos em relação às circunstâncias extraordinárias presentes na crise em andamento.
7) Atos estatais legítimos ou desproporcionais
Outra categoria de impactos envolve a desproporcionalidade e consequente invalidade de atos praticados pelo Estado, em suas diversas manifestações. Já se aludiu às diretrizes da Lei 13.979 para a adoção de medidas estatais. O descumprimento de tais pautas, mediante medidas desproporcionais ou sem base científica que provoquem perdas à concessionária, reforça o direito a uma compensação.
Se mesmo atos estatais válidos e razoáveis geram direito ao reequilíbrio por afetar de modo imprevisível ou irresistível a economia da concessão, o direito à recomposição tem fundamentos adicionais nos casos de atos estatais que desbordem dos limites normativos e atinjam a concessão de modo desproporcional, exagerado ou infundado.
Ressalte-se que o direito à recomposição não depende necessariamente da invalidade ou ilicitude do ato estatal. O reconhecimento da validade ou da ausência de ilicitude não se confunde com a ausência de impactos sobre a concessão.
É perfeitamente possível que se estabeleça inclusive uma presunção de legitimidade das medidas estatais de reação à crise. A gravidade da situação e o nível de incerteza científica podem dificultar o reconhecimento de que as medidas estatais são desproporcionais.
O regime jurídico derivado da Lei 13.979 e das MPs nº 926, 927 e 951 pretende justamente dar segurança aos agentes públicos na resposta à grave situação em curso. Pode-se defender que as diversas escolhas da autoridade são presumidas como adequadas e necessárias diante das dificuldades enfrentadas. A Administração Pública deve considerar as consequências práticas de suas decisões (art. 20 da LINDB), mas também se deve ter em conta o princípio da precaução e a exigência de que as decisões considerem o nível de informação disponível à época (art. 24 da LINDB).
Também por isso é que mesmo as medidas estatais não desproporcionais nem reconhecidas como ilegítimas produzem o direito ao reequilíbrio derivado de situações de caso fortuito, força maior ou fato do príncipe. A solução jurídica é distinta quando a concessionária sofrer os efeitos de práticas administrativas ilícitas.
8) Atos próprios da concessionária
A complexidade da crise e a velocidade com que os fatos se sucedem e se modificam provocam outra situação peculiar. Em muitas circunstâncias, os efeitos sobre a concessão derivam não diretamente de atos estatais, mas da reação da própria concessionária aos fatos – inclusive de suas iniciativas dirigidas à mitigação dos danos resultantes das circunstâncias extraordinárias verificadas.
Na sua condição de gestora dos serviços concedidos, a concessionária pode ser compelida a tomar decisões drásticas. Imagine-se a situação da concessionária constrangida a, mesmo inexistindo determinação normativa ou do poder concedente, cessar a prestação de serviços que seriam instrumentais à propagação do vírus. Ou se imagine a concessionária sujeita a despesas inúteis, cuja manutenção apenas ampliaria o desequilíbrio contratual, vinculadas à disponibilização de serviços para os quais praticamente não há usuários. Especialmente no setor de transporte de passageiros, os exemplos práticos de circunstâncias como essas são múltiplos. Não se pode impor à concessionária que mantenha serviços inúteis ou deficitários sem a retribuição adequada. Não é vedado que o Poder Público, no exercício de suas escolhas políticas, pretenda manter disponíveis serviços mesmo tornados economicamente inviáveis, desde que assuma de modo imediato e concomitante os ônus econômicos derivados da medida. Não é cabível impor à concessionária que assuma nem mesmo provisoriamente tais ônus, muito menos supor que de algum modo a prestação de serviços em tais condições de desequilíbrio estivesse abarcada nos deveres ou riscos da concessionária. Em casos extremos de omissão do Poder Público, a concessionária estará autorizada até mesmo a suspender unilateralmente a prestação dos serviços, mediante as cautelas e medidas preventivas adequadas.
Situações de desequilíbrio atual ou iminente não solucionadas pelo poder concedente autorizam a concessionária a adotar decisões de caráter inevitável e que correspondem às determinações que o poder concedente estaria obrigado a ordenar ou autorizar. Isso é ainda mais claro quando tais atos correspondam a formas de mitigação dos efeitos negativos provocados pelas circunstâncias extraordinárias verificadas. A eventual inação do poder concedente – inclusive explicada, em termos práticos, pelas múltiplas demandas que a excepcionalidade da situação apresenta às autoridades públicas – não pode resultar em perda adicional para a concessionária.
Ao contrário do que ocorre no caso de perdas derivadas de atos estatais explícitos e diretos, como o corte de voos ou a proibição de transporte interestadual, a comprovação dos impactos de atos próprios da concessionária, tornados necessários pelas circunstâncias derivadas da pandemia e dos atos e omissões estatais a elas relacionados, pode depender da prova de fatos que a concessionária deve ser apta a demonstrar. A concessionária deve adotar as cautelas necessárias com a documentação dos eventos, das suas posições próprias e da eventual omissão das autoridades públicas envolvidas, para que não haja dúvida acerca da proporcionalidade, adequação e legitimidade das medidas adotadas, inclusive quanto ao seu potencial de mitigação de danos e ao impacto inevitável dos fatos supervenientes sobre a concessão.
Vale também aqui o que já se disse sobre a noção de precaução traduzida no art. 24 da LINDB: não caberá julgar os atos da concessionária fora de seu contexto. Quando forem avaliados, devem ser aferidos segundo o nível de informação e conhecimento disponível na época de sua prática, adotando-se a presunção de que devem ser preservados e valorizados os atos razoavelmente compatíveis com as necessidades da época em que foram praticados.
9) Conclusões
Diversas ocorrências derivadas do surto da Covid-19 e da reação estatal e social à doença e aos riscos a ela associados ensejam o reequilíbrio econômico-financeiro das concessões.
Cada situação deverá ser examinada detalhadamente, mas, em linhas gerais, as circunstâncias extraordinárias vivenciadas se reconduzem às categorias de força maior e caso fortuito ou de fato do príncipe, ou à teoria da imprevisão, conforme a causa direta das perdas verificadas.
O direito ao reequilíbrio derivado de atos estatais independe da ilegitimidade ou ilicitude de tais atos, embora o direito da concessionária adquira fundamentos adicionais diante de atos governamentais desproporcionais ou sem fundamento científico.
Também não afeta o direito da concessionária o fato de as perdas apuradas derivarem de atos de iniciativa da própria concessionária, por vezes praticados em decorrência de circunstâncias incontornáveis ou com o propósito de mitigar, nas condições possíveis, os efeitos negativos da situação ensejadora do desequilíbrio contratual.
Cesar Pereira é Doutor e Mestre em Direito pela PUC/SP, Sócio da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.
Rafael Wallbach Schwind é Doutor e Mestre em Direito pela USP, Visiting scholar na Universidade de Nottingham, Sócio da Justen, Pereira, Oliveira e Talamini.