Sistema de registro de preços e (in)viabilidade da carona interfederativa nas atas municipais na nova lei de licitações
- 4 de agosto de 2023
- Posted by: Inove
- Category: Conteúdos
O presente ensaio pretende demonstrar a possibilidade de adesão às atas de registro de preços municipais no âmbito da 14.133/21 (Nova lei de Licitações e Contratos).
Não obstante a literalidade da referida legislação, que não prevê, de forma expressa, a possibilidade de carona nas atas municipais, é preciso realizar uma interpretação conforme à Constituição da nova lei de Licitações e Contratos para demonstrar a autonomia dos Municípios na definição sobre a possibilidade de adesão às suas respectivas atas.
Com efeito, a sistemática da utilização das atas de registro de preços por órgãos e entidades não participantes (caronas) prevista na lei 14.133/21 (NLLC) é inspirada naquela tradicionalmente consagrada no decreto federal 7.892/13 que regulamentava o SRP previsto no art. 15 da lei 8.666/93.
A referida afirmação revela que a NLLC incorporou ao seu texto as disposições regulamentares que representavam a opção do governo federal sobre a sua participação nas atas e a utilização das suas atas por outros Entes federados.
Nesse contexto, os limites e as possibilidades de caronas intefederativas previstas nos §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC refletem o mesmo tratamento já consagrado em âmbito federal nos §§ 8.º e 9.º do art. 22 do decreto federal 7.892/13. [1]
De acordo com os referidos dispositivos normativos a) os órgãos e entidades da Administração Pública federal, estadual, distrital e municipal poderiam aderir à Ata de Registro de Preços de órgão ou entidade gerenciadora federal, estadual ou distrital; e b) os órgãos e entidades da Administração Pública federal não podem aderir à Ata de Registro de Preços gerenciada por órgão ou entidade estadual, distrital ou municipal.
A partir da interpretação literal dos nos §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC, não haveria previsão de carona nas atas dos Municípios.
Quanto à adesão realizada por outros órgãos e entidades do próprio Município que implementou a Ata, parece não haver maiores questionamentos sobre a sua possibilidade, uma vez que a questão se insere no âmbito territorial da própria Edilidade, naquilo que poderia ser denominado de carona interna ou intrafederativa, o que não suscita maiores questionamentos sob o aspecto da autonomia federativa.
Contudo, a questão relativa à viabilidade de carona nas atas municipais por parte de outros Entes federados (carona externa ou interfederativa) tem gerado interpretações dissonantes.
De um lado, parcela da doutrina, que interpreta literalmente os §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC, sustenta a impossibilidade de adesão às atas municipais por outros Entes federados. [2]
De outro lado, alguns autores, com fundamento no pacto federativo, promovem uma interpretação conforme a Constituição dos §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC para viabilizar a adesão às atas municipais por outros Entes federados. Mencione-se, por exemplo, a tese sustentada por Victor Amorim:
“Em nossa compreensão, deve ser conferida ao §3º uma interpretação conforme à Constituição da República, porquanto a conclusão pela impossibilidade de adesão de ARP municipal atentaria contra a estrutura federativa do Estado brasileiro, constituindo um discrimen injustificado em relação a um dos entes da Federação – o Município -, autônomo como os demais. Afinal, por qual razão uma ARP municipal não poderia ser aderida por outros entes?
Ainda que se diga que o “legislador” buscou proibir a chamada “adesão verticalizada”, não há razão para vedar adesão de ARP municipal por parte de um outro órgão municipal. Em outras palavras: mesmo que se acredite na tese da proibição da adesão verticalizada, ela não seria aplicável a entes da mesma natureza (Município). Logo, o raciocínio tendente à proibição de adesão seria contraditório em vista de sua premissa central.
De toda forma, em termos substanciais, a norma do §3º seria de cunho específico, não obstando, pois, que Estados, Distrito Federal e Municípios, em sua legítima competência normativa concorrente sobre a matéria, tratem o assunto de maneira diversa em relação às suas respectivas estruturas organizacionais.” [3]
De nossa parte, sustentamos a necessidade de interpretação conforme a Constituição dos §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC para conferir aos Entes federados a decisão sobre a adesão às atas de registro de preços de outros Entes federados.
Em primeiro lugar, os §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC devem ser considerados normas específicas e não normas gerais, uma vez que a União Federal não possui competência constitucional para impor aos demais Entes federados vedações a respeito de cooperações interfederativas em matéria de contratação pública.
No âmbito das licitações e contratações públicas, a União Federal possui competência privativa para elaborar normas gerais (nacionais), aplicáveis a todos os Entes Federados, na forma do art. 22, XXVII, da CRFB, cabendo aos demais Entes federados a competência para fixação de normas específicas sobre o tema, com o objetivo de atenderem as peculiaridades socioeconômicas. [4]
De lado a impossibilidade de fixação de um conceito preciso e sem a pretensão de estabelecer um rol exaustivo de situações, é possível dizer que as normas gerais possuem razoável grau de abstração que garantem uniformidade ao processo de licitação em todas as esferas federadas, sem que interfiram nas peculiaridades regionais e locais de cada Ente Federado. As normas gerais não podem interferir na autonomia federativa (art. 18 da CRFB), sob pena de abuso de poder legislativo por parte da União Federal. [5]
É inerente à autonomia federativa a prerrogativa de cada Ente federado decidir sobre os envolvidos em seus pactos interfederativos, não sendo lícito à União restringir a celebração dos referidos pactos por Municípios e Estados. Vale dizer: com o pretexto de uniformizar nacionalmente alguns aspectos das licitações e contratações públicas, a União não pode estabelecer regras impositivas e restritivas, com pormenores, que comprometam a decisão autônoma dos Municípios sobre a utilização das suas atas.
Aliás, não é a primeira oportunidade em que a União pretende interferir, pela via legislativa, na autonomia dos Municípios na celebração de pactos interfederativos.
No âmbito dos consórcios públicos, que constituem contratos celebrados entre Entes federados para a realização de objetivos de interesse comum, a respectiva legislação prevê limitação para celebração de consórcios entre os Municípios e a União. Nesse sentido, o art. 1.º, § 2.º, da lei 11.107/05 dispõe que “a União somente participará de consórcios públicos em que também façam parte todos os Estados em cujos territórios estejam situados os Municípios consorciados”.
Conforme sustentamos em outra oportunidade, entendemos que a referida restrição é inconstitucional. [6] O condicionamento da formalização da gestão associada à participação obrigatória do respectivo Estado viola a autonomia federativa da União e dos Municípios (princípio federativo, art. 18 da CRFB) e diminui a efetividade da gestão associada prevista no art. 241 da CRFB. Isso porque os interesses da União e dos Municípios não são necessariamente idênticos aos interesses dos Estados, sendo desproporcional condicionar a atuação de demais entes à vontade do ente estadual.
No âmbito do denominado federalismo cooperativo, em que os Entes Federados devem atuar harmonicamente, a gestão associada de serviços representa uma prerrogativa importante consagrada pelo texto constitucional (exs.: arts. 18, 23, 25, § 3.º e 241 da CRFB). A cooperação mútua entre os entes é uma meta que pode e deve ser implementada (“princípio da conduta amistosa”), [7] inexistindo hierarquia entre os Entes federados no atual texto constitucional, mas a consagração do federalismo cooperativo, respeitada a repartição constitucional de competências. [8]
A adesão às atas de registro de preços revela, em grande medida, uma cooperação interfederativa e possui base consensual, uma vez que a sua implementação depende da vontade do Ente federativo aderente e da concordância do órgão gerenciador e do fornecedor.
Assim como os Municípios podem formalizar consórcios públicos entre si, inclusive para realização de licitações e contratações de interesse comum, na forma do art. 2º, § 1º, da Lei 11.107/2005, deve ser igualmente admitida a cooperação intermunicipal por meio da carona (horizontal) às atas municipais.
Registre-se, ainda, que a ausência de previsão de adesão às atas municipais na NLLC não pode acarretar a impossibilidade da referida adesão, sob pena de afronta aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Os Municípios, assim como os demais Entes federados, possuem autonomia para realização de suas licitações e contratações diretas, assim como para celebração de suas atas de registro de preços, inexistindo justificativa razoável para restringir a utilização das atas municipais a partir de uma decisão extroversa da União Federal.
Aqui, a vedação da adesão às atas municipais, além de desconsiderar a heterogeneidade federativa, inclusive no âmbito dos diversos Municípios brasileiros, parte da equivocada premissa de que o porte dos Municípios justificaria a referida vedação.
Aliás, sob o ponto de vista pragmático, alguns Municípios de pequeno porte, pela dificuldade de realizar licitações frequentes, seja pela falta de pessoal, seja pela falta de estrutura adequada, utilizam a carona nas atas de outros Entes federados para formalização de suas contratações.
Nesse ponto, a adesão à ata de outro Município poderia, em tese, ser uma solução eficiente, notadamente se inexistir ata federal ou estadual, bem como se as condições da ata municipal foram melhores que aquelas encontradas nas atas dos demais Entes. O carona, ao aderir à ata, contrata empresa que já apresentou proposta comprovadamente vantajosa, afastando os custos operacionais da realização de uma licitação específica pelo Ente aderente, em consonância com princípio da economicidade. [9]
Ademais, a viabilidade de adesão às atas federais e estaduais, com a restrição de utilização das atas municipais implica em tratamento discriminatório odioso entre os Entes federados, o que implica violação ao princípio da isonomia (arts. 5º, I, e 19, III, da CRFB).
Em verdade, cabe a cada Ente federado decidir sobre permissão de utilização das suas atas e a sua eventual adesão às atas elaboradas por outros Entes estatais, o que abre caminho para carona nas atas municipais. [10]
Nesse sentido, os §§ 3.º e 8.º do art. 86 da NLLC afrontam o princípio da autonomia federativa consagrado no art. 18 da CRFB, uma vez que restringem a autonomia dos Estados e dos Municípios sobre a adesão às atas municipais. A carona nas atas municipais pelos Municípios interessados (carona intermunicipal ou horizontal) ou por Estados deve ser decidida de forma autônoma pelos respectivos Entes interessados.
É preciso, portanto, interpretar os referidos dispositivos em conformidade com o texto constitucional para considerá-los normas específicas, com aplicação restrita à União, cabendo aos demais Entes federados a decisão sobre a utilização das suas próprias atas e a imposição de limites para adesão às atas de outros Entes estatais.
Em conclusão, a ausência de previsão de adesão às atas municipais na NLLC não pode acarretar a sua inviabilidade, salvo se essa decisão for expressamente adotada pelo respectivo Município, no âmbito de sua autonomia. A partir do princípio federativo, a implementação da carona intermunicipal nas atas de registro de preços deve ser uma opção colocada à disposição dos respectivos Municípios envolvidos e dentro dos limites, fixados na NLLC e nos regulamentos, que garantam a razoabilidade das adesões realizadas.
É preciso afastar, portanto, uma visão de superioridade federativa da União e de tratamento infantilizado dos Estados e dos Municípios na definição das suas parcerias interfederativas, com o objetivo de reconhecer a autonomia para decidirem sobre a utilização de suas próprias atas de registro de preços.
Rafael Carvalho Rezende Oliveira é Pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York). Doutor em Direito pela UVA-RJ. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ. Especialista em Direito do Estado pela UERJ. Professor. Ex-defensor Público Federal. Procurador do Município do Rio de Janeiro. Sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. Árbitro e consultor jurídico.
[1] Decreto federal 7.892/2013: “Art. 22 (…) § 8º É vedada aos órgãos e entidades da administração pública federal a adesão a ata de registro de preços gerenciada por órgão ou entidade municipal, distrital ou estadual. § 9º É facultada aos órgãos ou entidades municipais, distritais ou estaduais a adesão a ata de registro de preços da Administração Pública Federal.” Antes da edição do referido Decreto, a Orientação Normativa/AGU 21, com fundamento na ausência de previsão normativa, já estabelecia: “É vedada aos órgãos públicos federais a adesão à Ata de Registro de Preços, quando a licitação tiver sido realizada pela Administração Pública Estadual, Municipal ou do Distrito Federal, bem como por entidades paraestatais”.
[2] Nesse sentido, por exemplo: JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 1.182; SARAI, Leandro; CABRAL, Flávio Garcia; IWAKURA, Cristiane Rodrigues. O conceito de norma geral de licitação e contratação pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 282, n. 1, p. 216, jan./abr. 2023. De forma semelhante, Michelle Marry Marques da Silva, em obra coletiva, sustenta a impossibilidade de adesão às atas municipais: SARAI, Leandro (Org). Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos – Lei 14.133/21 comentada por Advogados Púbicos, 2 ed. São Paulo: Juspodivm, 2022. p. 1.041.
[3] AMORIM, Victor. A adesão de ata de registro de preços municipais na nova Lei de Licitações: por uma necessária interpretação conforme à Constituição do §3º do art. 86 da Lei nº 14.133/2021. Disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2021/07/14/a-adesao-de-ata-de-registro-de-precos-municipais-na-nova-lei-de-licitacoes-por-uma-necessaria-interpretacao-conforme-a-constituicao-do-%C2%A73o-do-art-86-da-lei-no-14-133-2021/. Acesso em: 20.03.2023.
[4] De acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitadas pelos Estadosmembros na feitura das suas respectivas legislações através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, às relações concretas a que se destinam, em seus respectivos âmbitos políticos.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Competência concorrente limitada: o problema da conceituação das normas gerais. Revista de Informação Legislativa, Brasília: Senado Federal, n. 100, p. 159, out.-dez. 1988. Conforme destacado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, as normas gerais “são limitadas, no sentido de não poderem violar a autonomia dos Estados”.
[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 12 ed. Rio de Janeiro: Método, 2023. p. 9. Cabe destacar que o STF já decidiu que algumas normas da Lei 8.666/1993 não são gerais, razão pela qual vinculam apenas a Administração federal (ex.: art. 17, I, “b”, e II, “b”, da Lei 8.666/1993, que equivalem, em certa medida, aos arts. 76, I, “b”, e II, “b”, da Lei 14.133/2021). STF, ADI 927 MC/RS, Pleno, Rel. Min. Carlos Veloso, j. 03.11.1993, DJ 11.11.1994, p. 30.635.
[6] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 11 ed. Rio de Janeiro: Método, 2023. p. 154-155. De forma semelhante, vide: CARVALHO FILHO, José dos Santos. Consórcios públicos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 21.
[7] HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998. p. 212-215.
[8] No tocante à ausência de hierarquia entre os Entes federados, o STF declarou inconstitucional a definição de hierarquia na cobrança judicial dos créditos da dívida pública da União aos estados e Distrito Federal e esses aos Municípios (art. 187, parágrafo único, do CTN e art. 29, parágrafo único, da LEF), em razão da violação ao art. 19 da CRFB (STF, ADPF 357/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, DJe 07.10.2021). É verdade que, no âmbito da desapropriação, tem prevalecido a aplicação literal do art. 2.º, § 2.º, do Decreto-lei 3.365/1941 que autoriza apenas a viabilidade de desapropriação de “cima para baixo” de bens públicos: a União pode desapropriar bens públicos estaduais e municipais, assim como os Estados podem desapropriar bens públicos municipais. De lado as nossas críticas ao referido dispositivo legal (OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo, 11 ed. Rio de Janeiro: Método, 2023, p. 718-720), não é possível estender a referida hierarquização de interesses à carona nas atas de registros de preços, uma vez que as normas de desapropriação representam exceções drásticas ao direito de propriedade que não admitem interpretação ampliativa.
[9] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Carona em sistema de registro de preços: uma opção inteligente para a redução de custos e controle. FCGP, Belo Horizonte, ano 6, n. 70, p. 7-12, out. 2007.
[10] Cabe mencionar a tramitação no Congresso Nacional do PL 2.228/2022, de autoria do Deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA), que pretende alterar a Lei 14.133/2021 para autorizar expressamente os Municípios a aderirem a atas de registro de preços municipais. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2333929. Acesso em: 20.03.2023.